“A equação proustiana nunca é simples. O desconhecido, escolhendo suas armas de um manancial de valores, é também o incognoscível”.
SAMUEL BECKETT
SAMUEL BECKETT
Calemo-nos diante de algo que nos permita um encontro com o saber. Algo que se desenha como energia dolorosa, profunda, confusa, intermediária; marca vital, absoluta a que chamamos de amor. É como se, mergulhando no tempo, encontrássemos em Marcel Proust – através do conto “Um amor de Swann” – uma disposição erudita, subjetiva; uma preocupação em elucidar um comportamento indefinível, subconsciente, mapeado, evidentemente, por um sentimento íntimo, porém incompatível. É pelo contraste que o estado amoroso se constrói de prazer e de dor, de veneração e desprezo, de temor e de interesse. Tal impulso orienta o nosso olhar lânguido e confuso pelas linhas aristocráticas de um escritor cujo saber filosófico vai além de Swann e de Odette, de Forcheville e dos Verdurin; enfim, de qualquer personagem. O retrato de sua obra nos assalta pela idéia de brindarmos a complexidade de uma descoberta a ser descoberta; não pela angústia intermitente a que somos expostos durante a leitura, mas por entre portas que se abrem, todas sem respostas, em todo o desenrolar da história. Uma cronologia difícil, wagneriana; pela capacidade de traduzir, através de gradações sutis, tudo o que existe de excessivo, de imenso, de ambicioso no homem espiritual e natural. Examinar Proust, através de Swann, nos permitiria, talvez, considerar metáfora do amor, a sonata de Vinteuil – compositor imaginário – cuja melodia se refere a ela mesma, à sua maneira de ser; espécie de linguagem em que se considera o motivo musical como verdadeira idéia, de outro mundo, de outra ordem; velada de trevas, desconhecida, impenetrável à inteligência. Como observamos nesta passagem:
“Ela logo lhe insinuava peculiares volúpias, que nunca lhe ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido”. 1
A música, neste caso, funciona como elemento catalisador na obra proustiana, sintetizando momentos de privilégio, correndo paralelamente a eles. A aproximação da melodia de Vinteuil nos confessa uma disposição nervosa, sutil, porém apaixonante. Prisão inexorável de Afrodite a qual Swann, amante, se enfeitiçara por Odette.
Marcel Proust nos contamina, sem dúvida, pelo vocabulário complexo e orações intercaladas. Um estilo cansativo, mas que não cansa a mente. Onde o tempo e a memória servem de tempero em cada palavra convertida em paixão, delírio e ciúme. Talvez sua obra nos permita – pelo aspecto intermitente a que julga as faces do amor – uma discussão que se aproxime ao clássico “O banquete” de Platão. Uma experiência procedente mas contrastante a obra proustiana; ancorada por uma complexidade filosófica que liga nossos sentidos por uma série diálogos cuja compreensão só é permitida no exame de cada peça oratória; elo de uma cadeia que termina na solução platônica de elogio sobre aquilo que está em todas as coisas. Como observamos no discurso de Fedro:
“Assim, pois, eu afirmo que o amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.”2
Platão, por sua vez, viu no amor uma força vital absoluta, e compreendeu que o caminho do conhecimento deveria passar portanto através dele (o amor) para levar às últimas potências ideais e metafísicas. Logo, observamos em Proust uma interpretação filosófica cujo objeto do amor é justamente o espírito ancorado por um ponto de vista cronológico, sinuoso. Onde somente no esplendor da arte poderá ser decifrado o êxtase perplexo que ele conheceu perante as superfícies insondáveis de uma nuvem, um quadro, uma torre, uma flor, da música, do teatro...; um calabouço de descobertas. Sua “verdade” nos remete a uma estética fria, quase autônoma. Espécie de fisiologia revelada pelo aspecto sensual, descritivo em que veste os seus personagens; vítimas, talvez, de um estilo que priorize a qualidade de uma linguagem que se articula semelhante a um tempo musical de andamentos e movimentos melódicos sempre diferentes; sinfonia abstrata, absoluta, contemplativa mas sempre nostálgica. Miragem elitista onde positivo e negativo se misturam no “jogo” quase epilético de um relativismo intuitivo. Denúncia de um amor volúvel, ao qual Swann, no fim do conto, sentencia com seu desprezo tardio a Odette.
As idéias de Marcel Proust ferem a tolerância de quem não o conhece; mas consegue, ao mesmo tempo, pela imaginação de suas palavras, nos fortalecer na experiência de algo esplendoroso; cirurgia mental que nos liberta.
Notas:
1. PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p.125.
2. PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti de Souza. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p.118.
1. PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p.125.
2. PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti de Souza. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p.118.
Referências Bibliográficas:
BECKETT, Samuel. Proust; tradução Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti de Souza. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
SIMMEL, Georg. Filosofia do Amor; tradução de Luís Eduardo de Lima Brandão: revisão da tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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