Apresentação
Este texto pretende introduzir, mesmo que resumidamente, alguns sintomas de construção simbólica e práticas sociais que poluem, na contemporaneidade, o imaginário coletivo do brasileiro. Tal perspectiva será administrada com indiferença a historiografia convencional; não pela falta de relevância cientifica1; mas porque entendemos que esta se disfarça (ainda) sob uma espécie de condicionamento colonialista. Uma série de equívocos que não terminam no limite da própria história, mas que contaminam o terreno geral do político.
Do canibalismo ao primitivismo conformista; da mentalidade colonizada e oprimida; eclipsada pela televisão e pelo subcinema comercial, discutiremos as tensões entre nossa cultura e a “cultura civilizada”. E para não entrarmos na circularidade apocalíptica que reproduzimos infantilmente quando nos olhamos no espelho, prefiro situar um outro elemento: o Carnaval; que longe da visão antropológica de Roberto da Matta2, se coloca, aqui, como estratégia de disfarce, como signo arbitrário; que agora subverte a arte (pela falta de regra fundamental e, ao mesmo tempo, pela estetização geral); a música (o fim das vanguardas musicais pelo oportunismo fonográfico); a história (a morte do real pelo virtual3); a antropologia (a tradição como mercadoria exótica); a sociologia (a ordem social como ordem estatística; apenas o discurso de uma cidade invisível – lembremo-nos de Ítalo Calvino4 – sobrevive como explicação para a barbárie social).
Logo, apesar de propor uma outra hierarquia social pelo riso e pelo grotesco, o discurso carnavalesco se esgota na própria ambigüidade; e aí como via de manutenção do status quo; corrosão que se dá apenas no nível da linguagem como instrumento de dominação. Sistema que nos ajudará, talvez, a pensar essas relações, como diz Pierre Bourdieu5, numa espécie de “microcosmos de luta de classes”.
Notas
1 A questão da subjetividade, da verossimilhança e da linguagem observadas como capital simbólico do historiador que, na própria estrutura do campo em que se produz e reproduz a sua crença, subverte fenômeno histórico. Sem deixar de manter, no entanto, sua base analítica, a mediação se dá; vítima da consciência social do meio e de uma espécie ortodoxia epistemológica.
2DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro. Rocco, 6ªEdição, 1997.
3Sobre isso ver: BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão Vital; tradução de Luciano Trigo. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2001.
4CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis; tradução de Diogo Mainardi. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.
5BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico; tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 7ªEdição, 2004.
A questão antropofágica
Recuperamos o canibal como matriz de oposição simbólica ao etnocentrismo e, ao mesmo tempo como personagem vulnerável porque faminto aos encantos da realidade opressora. Ensaiado por Oswald de Andrade6 como o ícone de uma postura independente, crítica, irreverente ante a condição submissa que se encontrava o Brasil, tal orientação estética e ideológica se encontra, agora, em transe. Fome que continuamos a tê-la; sempre disfarçada por exposições carnavalescas e fórmulas fáceis de sucesso. O jogo da alteridade, antes tido como rebelião imaginária (vemos a literatura7); reação anticolonialista que nos libertaria de nossa condição submissa pela “devoração do outro”, se encontra, hoje, sem nenhuma perspectiva porque sufocada pela razão burguesa; grande mantenedora de uma visão relativa da cultura popular; esta descrita e definida pela “mestiçagem”; espécie de fantasia; máscara para ocultar o fantasma do corpo estilhaçado que nos sustenta.
Índios, escravos, sem-terras, flagelados e desempregados; todos nós coadjuvantes de um mundo fictício, observamos através da linguagem, da licença e do abuso, o nosso cotidiano simulado através mitos eróticos e políticos. O instinto antropofágico que outrora serviria como terapêutica; remédio drástico mas salvador da convalescença intelectual do país foi subtraído, não como força emancipável mas como “... luta propriamente simbólica (...), reproduzindo de forma transfigurada o campo das posições sociais8”. Vemos, portanto, que o mundo oficial, aquele mesmo a nos devorar em carne e osso (pela dominação econômica), é o mesmo a nos lançar num ambiente de dominação simbólica. Através de estratégias de controle e de disfarce, somos a ficção dada pelo outro.
Enquanto a cultura não for revolucionada, continuaremos a ter nossa miséria moral sempre disfarçada ideologicamente por estratégias que, segundo Marilena Chaui9, “não fornece aos homens o conhecimento da sua estrutura social, mas justifica o sistema pelo que ele é, através de uma falsa consciência”.
Notas
6Ancorado no Movimento Modernista Brasileiro, o poeta, romancista e ensaísta, Oswald de Andrade, (1890-1954) apostou no Manifesto Antropofágico (1928) como “Metafísica Bárbara”; “mistura de imagens, conceitos, provocação polêmica, irreverência à intuição da história. A prática do canibalismo, a devoração antropofágica é o um misto de insulto e sacrilégio contra um inimigo de muitas faces. São eles: o aparelhamento colonial político-religioso repressivo sob que se formou a civilização brasileira, a sociedade patriarcal com seus padrões morais de conduta, as suas esperanças messiânicas, a retórica de sua intelectualidade, que imitou a metrópole e se curvou ao estrangeiro, o indianismo como sublimação das frustrações do colonizado, que imitou atitudes do colonizador”. Ver mais sobre isso em: ANDRADE, Oswald de. Obras Completas: Do Pau-brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1970.
7Também produto do antropofagismo, Macunaíma (1928) representa no literário a sátira contra a mesmice; onde o lirismo, a mitologia e o folclore misturam-se através de um linguajar popular. Mário de Andrade (1893-1945) utiliza traços do Dadaísmo, Futurismo, Expressionismo e Surrealismo, sobrepostos às raízes da cultura brasileira. Ver: ANDRADE, Mario de. Macunaíma: O herói sem nenhum caráter; texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro. Livraria Garnier, 32ªEdição, 2001.
8BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico; tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 7ªEdição, 2004, p.11.
9CHAUI, Marilena de Souza. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 3ªEdição, 1980, 25.
A questão tropicalista
O movimento tropicalista10 se afirmou, no final dos anos 1960, como reedição do Antropofagismo oswaldiano, fruto de uma consciência social, depois política e econômica, combinada com exigências estéticas e morais. Através da paródia e do deboche encontrou na música e em outras artes como Tropicália11– escultura de Helio Oiticica e na peça O Rei da Vela12 – de Jose Celso Martinez (alguns exemplos), a sua forma de expressão e contracultura. Fonte de experimentação que, se por um lado nos livrou das manias européias, por outro nos ajuda a rediscutir, hoje, o exotismo formalizado como percepção imediata de nossa cultura. Para o “discurso oficial” somos uma síntese da multiculturalidade romântica herdada sob a piedade colonialista dos jesuítas; para os intelectuais essa diferença só pode ser “resolvida” pelo seu diferencial irônico; ou seja, pelo jogo violento da sedução e da devoração. Será uma lei? A teoria do exotismo será ética, estética, uma filosofia, uma arte de viver, uma visão de mundo?
Vemos que predominante não é o regime da diferença e da indiferenciação, é o da incompreensibilidade eterna; estranheza irredutível das culturas, dos rostos e das linguagens. O tropicalismo revela esse diagnóstico porque nos lança no pânico carnavalesco do Brasil; lugar onde “a bossa e a palhoça”13 convivem juntas. Surrealismo tropical em que, impor-se um conceito de cultura (apenas), torna-se impossível por qualquer via; a não ser a do poder de quem a nomeia, repetindo o gesto de dominação.
O exótico no Brasil é, antes de tudo, um discurso travestido; mito romântico da democracia racial que subverte o político, o social, o tecnológico, o cultural, o espiritual, o sexual. A sociedade primitiva ainda não tirou suas máscaras e nem a sociedade burguesa se livrou de seus espelhos; o que sobreviveu foi uma predestinação arbitrária, uma espécie de abuso. Apenas sedução; excesso do outro e da alteridade, vertigem do mais diferente que o diferente.
Enquanto a cultura for observada de maneira residual, ou seja, ignorando as contradições políticas e histórico-sociais sob uma perspectiva de luta de classes, estaremos condenados pelo vício da legitimidade absurda dentro da experiência comum. Por isso, entendemos que o exótico - signo que se desloca no campo semântico da racionalidade, deve seguir um outro paradigma cultural que não seja mais o da resistência (universalidade abstrata) e sim o da revolução.
Notas
10Ver mais sobre isso em: VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
11O termo Tropicália nasce como nome da obra de Hélio Oiticica (1937-1980) exposta na mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, em abril de 1967. O uso de signos e imagens convencionalmente associados ao Brasil não tem como objetivo figurar uma dada realidade nacional - tarefa que mobilizou parte de nossa tradição artística -, mas, nos termos do artista, objetivar uma imagem brasileira pela "devoração" dos símbolos da cultura brasileira. A idéia da "devoração", nada casual, remete diretamente à retomada da antropofagia e ao modernismo em sua vertente oswaldiana, da qual se beneficia a obra de Hélio Oiticica.
12A estréia de O Rei da Vela, em 1967, teve o mérito de incorporar Oswald de Andrade, com um texto publicado em 1937, à História do Teatro Brasileiro, e de ser o arauto de um movimento batizado como tropicalismo, de repercussão em outras artes.
13Os termos Bossa e Palhoça, utilizados na Música Caetano Veloso, sintetizaram na canção “Tropicália”, conversas e discussões estéticas que vinha tendo com Gil, com seu empresário Guilherme Araújo, com a cantora (e sua irmã) Maria Bethânia, com o poeta Torquato Neto e o artista gráfico Rogério Duarte. O resultado foi uma espécie de colagem poética, que traçava uma alegoria do Brasil através de seus contrastes. Quem sugeriu o título “Tropicália” para essa canção foi o fotógrafo (mais tarde produtor de cinema) Luís Carlos Barreto, que ao ouvi-la, no final de 1967, lembrou da obra homônima que o artista plástico Hélio Oiticica expusera no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, alguns meses antes.
Conclusão
Mesmo sabendo que o nosso projeto como nação política deva conter como princípio à superação de heranças ideológicas e estruturais de fundo deformador, cumpre-nos ao mesmo tempo manter a necessária clarividência crítica para buscarmos distinguir e preservar, dos matizes de ancestralidade, os traços positivos que conferem a nossa cultura o seu caráter definidor, a sua maturação de consciência, a sua dignidade afirmadora. A arte nova e a literatura nova têm a obrigação de saber que toda a criação, não obstante a sua modernidade, a sua novidade, está sempre apoiada numa linha de tradição, elemento dinâmico a mover e impulsionar o processo estético; e que, ao mesmo tempo, este processo tem que ser observado dialeticamente. Se a nossa arquitetura se exporta, se a nossa ficção hoje se exporta, se a nossa poesia hoje se exporta, se o nosso cinema e a nossa música hoje se exportam, é porque estamos exportando com a nossa arte a nossa própria expressão nacional, a qualidade – mais do que a novidade – do nosso modo de ser como povo, como nação. Soubemos, com o modernismo, reavivar a linha de tradição da inventividade, da abertura a formas que nos legou o barroco. E a nossa responsabilidade como artista paradoxalmente adulto, num país subdesenvolvido como o Brasil, nos prescreve uma atitude de permanente consciência crítica, consciência tanto diante da realidade, quanto da dignidade afirmadora de nossa própria identidade. E só estaremos exercendo esta consciência enquanto formas capazes de reinventar e revolucionar. Uma crítica exercida não apenas sobre a linguagem, mas principalmente sobre a realidade de que ela emerge, que ela exprime, que ela denuncia, realidade que cabe ao artista auxiliar a modificar com a ação sempre renovadora da arte verdadeiramente inventiva.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico; tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 7ªEdição, 2004.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro. Rocco, 6ªEdição, 1997.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
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