sábado, junho 14, 2008

Da matéria onírica


“O homem não é mais escravo da razão”.
Andre Breton
Limite1 é a emancipação pelo sonho. Pintura inacabada de Monet. Subversão da experiência na poesia impressionista das figuras. O sentido da fixidez revelado pelas algemas no filme, consagra a idéia de um cinema-ontológico preso a determinação estrutural; que morre logo em seguida para nascer uma ontologia pura, simples, que é a própria vida. Limite é o não limite porque foge as dimensões da moldura; instabilidade do universo que se transforma através de nossos olhos; sentimento infinito em permanente deslocamento que joga com a suposta imobilidade das coisas, das pessoas. Um barco refém atingido pelas ondulações nos traz a memória de um rochedo cuja erosão diagnosticada modifica o sentido do tempo. O devir rochedo é a sua constante exposição ao movimento das águas e do ar. Logo, a potência do filme está na ênfase sucessiva da antítese movimento x repouso, sem reconciliação; porque tudo é relação de movimento e de repouso, entre moléculas ou partículas, entre as árvores e o vento, de poder afetar e ser afetado. Quando Auguste Rodin esculpiu a “Mulher agachada” (1880-82), ele evitava uma aparência de acabamento, preferindo deixar algo para imaginação; como em toda a sua obra. Do mesmo modo o filme, tal como a escultura impressionista, nos transporta para a terceira dimensão na luz, na espontaneidade, na fragmentação e desintegração da forma operados; em algum momento, também, pelo jogo de luz e sombra. Impressões transitórias, sempre. Como neste poema de Manuel Bandeira:
“A onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda.”2

Sobre os movimentos europeus de vanguarda utilizados no filme, além do Impressionismo, vejo o Dadaísmo e o Surrealismo como ocupantes de um lugar especial; onde se destroem os sistemas baseados na razão e na lógica, substituindo-os por valores ancorados no primitivo e no irracional. Essa edificação do inconsciente, liberta de todas as amarras numa abordagem artística de imagens e sons, questiona o próprio estabilishment da arte numa dialética da memória; tornando os personagens rítmicos, autônomos e realizando, ao mesmo tempo, uma extraordinária paisagem em contrapontos complexos; acordes subtendidos ou inventados: é a máquina de costurar que se compõe ao rosto da mulher numa espécie de pulsação ativa do movimento (Lembrei-me de Vertov!), até o balançar das árvores pelo vento ou das telhas se compondo ao céu. Enfim, uma poética que Mario Peixoto cortou e recombinou em cada fotograma/verso com o objetivo, talvez, de dessacralizar o passado através das fantasias daquele mundo burguês tão estável no qual ele mesmo havia crescido; reação contra o retoricismo, a frieza das estruturas formais, o descritivismo inanimado e as exterioridades pomposas que, ainda, tem fundas raízes na nossa vida cultural; e o filme é, sem dúvida, uma reação atemporal contra o mau gosto nas artes.
Notas
1. Filme de Mario Peixoto;1931.
2.Extraordinário poeta modernista brasileiro. Ver mais em: BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1971.

Bibliografia

3. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

4. XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema: antologia. Organizador: Ismail Xavier. Rio de Janeiro: Edição Graal: Embrafilmes, 1983.

terça-feira, junho 10, 2008

O digestivo e a impossibilidade estrutural do movimento


O filme se esconde na timidez e na falta de coragem em criar um argumento cuja profundidade filosófica inspire uma reflexão crítica mais realista; porque a trajetória do imigrante nordestino é forjada no jogo sedutor de uma obsessão reativa, cujo maniqueísmo vulgar nos toca, sempre, como falso. A dinâmica social sugerida por “Estômago” não atinge as relações de poder com intensidade, mas apenas como módulo ético, afetivo, entre aquele que manda e a obediência religiosa daquele que obedece; sublinhando, com isso, um certo tipo de inferioridade do homem provinciano; idéia já absorvida com facilidade pelo senso comum. Se Raimundo Nonato é representado como estatística, logo, pode ser pasteurizado semanticamente. Daí toda a facilidade e conveniência de um roteiro comercial. O sobre-trabalho, a exploração do homem pelo homem, não atingem o político mas um tipo de ajuste entre a aparência das coisas, o conflito não aprofundado e o jeitinho como estratégia de disfarce. Essa lógica, quando posta em movimento, subtrai as contradições e superficializa os elementos da estrutura. A suposta relação de poder sugerida no filme, longe de postular uma crítica social na estória narrada, anula a dimensão conflitiva; mergulhando no exotismo, no fetiche, no paralelismo e no melodrama.
O signo alimento tenta atingir a dimensão do erótico porque se articula como fetiche do sexual; não apenas através de uma suposta “falocracia”; mas do signo sexo enquanto potência discursiva, sempre em forma de “jogo” (muito longe do sentido de Jorge Luis Borges). Tal como o feminino que, encerrado negativamente numa estrutura enfraquecida onde se encontra aprisionado, não recobre uma “autonomia” de desejo ou de gozo, nem tampouco reivindica a sua verdade; apenas seduz. A prostituta Iria, nada mais significa do que aparência; logo, é o feminino como aparência que põe em xeque a profundidade do masculino. Diante disso, o que há, no filme, é sempre a tentativa de captar e imolar o desejo do outro; da impotência enquanto sedução. Desafetos, neuroses, angústia, frustração. Tudo o que a psicanálise encontra, sem dúvida, provém do fato de não se poder amar ou ser amado, de não se poder gozar ou se proporcionar gozo; mas o desencantamento radical da sedução e do seu fracasso. Neste sentido, o que sobrevive ao invés da máscara, do disfarce e da simulação, é um tipo de asfixia estrutural, esquemática, fixa; no charme da gastronomia de botequim, do restaurante sofisticado ou do almoço na cadeia; enfim, tudo aquilo que coopera para se justificar no desenho do flashback (relação da imagem atual com imagens-lembrança) narrado pelo personagem, cria um tipo de ficcionalidade que, também, se prostitui. O filme não consegue digerir aquilo que ele próprio expõe e soluça numa espécie de “morfologia”, cujo princípio de saciedade se exerce por meio de uma paixão fetichista. O roteiro de “Estômago” funciona; só não atinge o movimento das imagens; ao contrário, as paralisa. Neste sentido, a vida não é tocada; apenas o teorema do paladar.
O tempo Cronos do filme se bifurca em dois momentos paralelos, cúmplices; fixando os personagens e as coisas, desenvolve uma forma e determina o sujeito até a hora do crime. A narrativa se prende a este movimento porque é escrava de uma fidelidade auto-explicativa. Onde o teatro épico Brechtiano e, sobretudo, o literário são poucos explorados pelo que percebi. Como seria a originalidade de Borges em estender esse jogo a toda ordem social de “Estômago”? Onde vemos apenas uma estrutura de pouco peso, em vista da boa e sólida infra-estrutura das relações sociais respeitada pelo diretor, teríamos a reversão de todo o edifício; além do fazer da indeterminação a instância determinante. Já não é a razão econômica, a do trabalho e da história, já não é o determinismo “científico” das trocas que determina a estrutura social e a sorte dos indivíduos, mas um total indeterminismo, o do Jogo e do Acaso (metáfora da grande feijoada!). A predestinação semântica do filme coincidiria com uma mobilidade absoluta, um sistema arbitrário com a democracia mais radical; troca instantânea de todos os destinos, para satisfazer a “fome” de polivalência de nosso tempo que, ao invés de ser um tempo Cronos, estrutural e previsível, é um tempo Aion, indefinido do acontecimento; linha flutuante que só conhece velocidades; um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar.
A transgressão funciona como atitude à insuficiência discursiva do personagem Raimundo Nonato; na medida em que o ato criminoso nos surpreende por uma espécie de “formalismo bem comportado”, numa articulação essencialmente individualista e não como devir político-social. O “Antropofagismo” de Oswald de Andrade não foi digerido numa coerência estético literária inovadora; mas na repetição dos equívocos da historiografia convencional; devorar a carne para incorporar a força e, ao mesmo tempo, afirmação de um poder e destruição da diferença sobre o outro não adquirem um estatuto pedagógico-reflexivo. A “parte” da mulher comida e o vinho bebido, se compõem, numa espécie de atitude violenta e corrosiva, que poderia representar, talvez, um dos instrumentos de revide possível à cultura imposta pelo “colonizador”. Todavia, a sequência não consagra uma densidade psicológica que nos mova neste impulso. Muito diferente do romance “Palmeiras Selvagens”, de William Faulkner; se trabalharmos com a hipótese particular de um “Herói” entre a Dor e o Nada; onde encontraríamos a loucura e a ingenuidade eternamente modificadas em potências desafiadoras ao longo do percurso delirante das páginas/cenas. Longe desta possibilidade, o filme de Marcos Jorge não consegue atingir um tipo de fenomenologia da digestão; aliás, atinge no sentido Kantiano; através do objeto e de sua dedução lógica no contexto espaço temporal proposto. Muito diferente de Husserl onde os fenômenos físicos não têm intencionalidade e, nesse sentido, todo um processo de “Dispepsia” (má digestão nesse caso), se desenvolveria numa reflexão síntese dos aspectos perceptivos e funcionais do movimento do corpo.
Termino a minha análise sob a hipótese de que “Estômago” se contrapõe radicalmente ao texto “Eztetika da Fome”, escrito por Glauber Rocha; e, ao mesmo tempo, não absorve o fenômeno histórico; tornando-se, com isso, um filme comum.
Bibliografia
BARTUCCI, Giovanna. Borges: A Realidade da Construção: Literatura e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Prólogo de J.B.S. Haldane. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª edição, 1979.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

quinta-feira, junho 05, 2008

O espectro da ontologia brasileira


“(...) Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
(Hino Nacional - Carlos Drummond de Andrade)
Começa Serras da Desordem. Um ensaio etnográfico, antropológico desperta imediatamente os sentidos. Levi Strauss conduz com segurança o meu olhar pelo exotismo estrutural na figura do aborígene sob a experiência primitiva do fogo. Imediatamente, fui surpreendido; corte dos blocos de imagens articuladas; consecução e simultaneidade. Percebi o romantismo poético de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu; ritmo de um convívio tribal logo disperso pela chegada do homem branco. A diáspora se insurge neste exato momento de troca subjetiva: nasce o Índio; neologismo recuperado pelo “homem civilizado” que irá se legitimar freneticamente no percurso da opressão histórica discutida pelo filme; porque o espelho se quebra na experiência traumática do encontro. Aquilo que explode na tela, mais do que uma relação contraditória, irreconciliável, é a morte de uma narrativa histórica convencional, linear; também, a morte da alteridade radical da linguagem; porque já não existe mais duelo entre a linguagem e o sentido. Percebi, então, o impulso afetivo no permanente deslocamento espacial, simbólico e geográfico que, a meu juízo, não dialogam apenas com um tempo isolado mas com experiência afetiva que é articulada no movimento desse tempo; e, nesse sentido, a total perda referencial do presente ou passado, do mental ou físico. O princípio da espacialidade é diferente; tanto para o lado de Carapiru, quanto para nós. Logo, o filme de Andrea Tonacci tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginário; fragmentos da consciência onírica e empírica do diretor, que pintam, cirurgicamente, através de imagens e sons, cacos de uma iconografia histórica que não conseguiu, ainda, superar essa mesma realidade desintegrada; e aceita, com isso, uma abordagem romântico-modernista; justificada por reproduzir o mito do “bom selvagem” como expressão caótica do índio; característica muito presente, inclusive, na literatura de Sérgio Buarque de Holanda.
Existe uma revisitação à memória na instantaneidade e onipresença dos acontecimentos sugerida no tempo em que o filme está sendo exibido; pela capacidade de recusar o real e de propor a esse mesmo real outro cenário, onde a imagem dos seres, das cores sobre a tela, se liberam na mixagem transfigurada do movimento; espécie de antídoto contra o mito de uma consciência que não inspira nenhuma resposta, mas a vertigem circular entre dois mundos supostamente irreconciliáveis. A ficção Serras da Desordem simula o desaparecimento do índio através de um modo fractal de dispersão incessante, pelo deslocamento infinito da consciência e da própria ordem das coisas; já o documentário Serras da Desordem, nos diz que o peculiar e o fractal são o esquema atual de nossa cultura, e, por isso, o caráter estruturalista – como modelo de um sistema de diferenças – já não funciona eficazmente como aparelho científico de classificação de uma performance midiática, ondulante, da angústia gerada pelo filme. Diante disso, a promiscuidade entre ficção e documentário, índio e homem branco “flutuam” em inúmeras ramificações interpretativas; porque a desordem é o caminho, a voz iracundia que se perde na serra, que nos toca afetivamente pelo sentimento estético do anti-relevo, da anti-continuidade, do anti-significado. Realidades afetivas que ressoam livremente no jogo poético e antropofágico do movimento.
A idéia de progresso discutida em Serras da Desordem não está na ferrovia ou na fisionomia arquitetônica das grandes metrópoles; ela se traduz pela incoerência marginal deste progresso na tentativa medíocre de civilizar o índio; além de expô-lo como mercadoria exótica nos corredores do poder. É como se, no lugar de efeitos especiais, de acontecimentos imprevisíveis, Carapiru se acomodasse como protagonista no jogo irracional do teatro exemplar de nossa representação; onde os níveis de consciência coletiva fossem inteiramente efeitos midiáticos, regidos pela obstinação superficial da especulação. A alteridade torna-se, com isso, além de melodramática, auto-reprodutiva, auto-destrutiva. Vemos, então, que o desaparecimento do índio não importa desde que ele se reproduza na vitalidade da imagem; seja do cinema ou da televisão. Quando tal impulso é admitido, reconhecemos nessa tentativa frustrada um mecanismo de fuga inconsciente; onde estaremos condenados a simulação técnica do desejo e da consciência de si.
A boa fotografia do filme não representa nada; ela capta essa não representatividade, a alteridade do que é estranho a si mesmo, o exotismo radical do objeto-índio-homem-branco. Colorida ou em preto branco, a fotografia é o nosso exorcismo. Quando a sociedade primitiva tira as suas máscaras e a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens. Tonacci executa um tipo de fotografia que nos aproxima da mosca, de seu olho facetado e de seu vôo em linha quebrada. Somos a própria mosca varejeira a espreitar, através do filme, um cadáver em decomposição; ao mesmo tempo que tentamos reconstruir, como na anamorfose, a partir de seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada, suas linhas de fratura, a forma secreta de nossa tragédia histórica.
Serras da Desordem não termina porque foge às dimensões da moldura e, por isso, continua no fluxo da memória e do tempo em busca não de uma resposta, mas do devir permanente contra uma historiografia que tenta, sem sucesso, nos conduzir na poesia inacabada de nossa existência.
Bibliografia
1.BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro. Editora José Olympio, 1971.
2.ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro. Record, 20ª Edição, 1986.
3.FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Circulo do Livro S.A, 1933.
4.LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.