terça-feira, julho 11, 2006

Os espelhos de Glauber

Neste breve ensaio, tentaremos, mesmo que resumidamente, mostrar como o “cineasta ao lado de outros desbravadores”, abriram caminhos a formas excepcionais não da realidade vista mais sim criada com o olho da imaginação; visão interior que se projeta sobre as formas do mundo e as enriquece.


1.1 - Glauber x Joyce:

Ao lançar vocábulos de grande, embora arbitrária, complexidade, James Joyce8, estava sendo sempre fiel ao principio de comunicação artística; uma inteligibilidade que evoca uma riqueza mental labiríntica; espécie de literatura-sonho que ultrapassa todos os limites. Como podemos perceber no emblemático Finnegans Wake; obra que exorciza e ao mesmo tempo reinventa uma nova expressividade através do malabarismo frenético de suas palavras; experiência onde as coisas, os signos, as ações são libertadas de sua idéia, de seu conceito, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade; espécie de indiferença total a seu próprio conteúdo. Obra que conseguiu se antecipar e “orientar”, indiscutivelmente, toda a literatura do séc XXI; uma riqueza mental que se aproxima à dialética ácida de Glauber Rocha, porta-voz de uma “loucura” revolucionária que choca pela verdade que a intelectualidade brasileira colonizada pela ignorância, insiste em desprezar.
O curioso é que tanto em Glauber quanto em Joyce, figuram dois aspectos que buscam um equivalente verbal para um estado da mente que não se tem acesso através da linguagem comum. O primeiro aspecto é a luminosidade incomparável de um escritor que se define pelo quebra-cabeça de uma obra escrita; uma obra que imediatamente desafia a nossa capacidade de análise. Finnegans Wake é, sem dúvida, a materialização de uma mente poliglota. O Segundo aspecto, é a tentativa glauberina de ruptura de um inconsciente coletivo, viciado pela razão opressiva; “veneno” que estimulava a sensibilidade turbulenta de um cinema constituído por uma linguagem profusamente simbólica; complexidade demonstrada pela visão ideológica de um cineasta-escritor, cuja melodia das palavras se confunde com a de Joyce pelo caráter inventivo, imagético. Química que funciona como libretos de ópera que se entrelaçam em busca da sinfonia perfeita, espiritual; vôo livre em direção ao éden da inspiração e da criação.
Glauber Rocha e James Joyce tiveram suas vidas ironicamente marcadas pelo exílio e por controvérsias. Duas visões que se encontram pela expressividade sempre reinventada; fenômeno que consegue, sem dúvida, reabrir as janelas da imaginação pela engenhosidade espontânea que cada um exerce no campo semântico de suas respectivas artes.

1.2 - Glauber x Picasso:
O experimentalismo de Glauber consegue levar as ultimas conseqüências à idéia de fluxo audiovisual; um inconsciente cinematográfico e social que emerge da tela. Estilo que nos permite, pela deformação e pela caricatura, aproximá-lo a Pablo Picasso9, gênio da metamorfose e da desconstrução cujo caráter revolucionário e o comprometimento com seu povo (durante a guerra civil espanhola) geraram Guernica10– grande composição em preto e branco com imagens convulsas e estilhaçadas que denunciam o bombardeio da cidade espanhola pela força aérea alemã. Obra-prima do século XX, onde se misturam as contradições da nossa época: progresso e violência, catástrofe e prosperidade. Convulsão estética também observada em Cabezas Cortadas11, filme co-produzido por Glauber Rocha na Espanha em 1970; espécie de grafismo surrealista contra o totalitarismo; exacerbação da via política onde se elege a ruptura estética e também existencial da realidade pelo sonho. Obra prima que, segundo ele:
“(...), é o funeral das ditaduras. Trato de um personagem que seria o encontro apocalíptico de Perón com Franco, nas ruínas da civilização latino-americana. Filmei nas pedras de Cadaqués, onde Buñuel filmou L’age d’Or. A Espanha é a Bahia da Europa. Cabezas Cortadas desmonta todos os esqueletos dramáticos do teatro e do cinema. O cinema do futuro será som, luz, delírio, aquela linha interrompida desde L’age d’Or”12.

A aproximação de Guernica e Cabezas Cortadas está no fio da narrativa, na superfície indecifrável da narrativa; forma irônica de mitologia das aparências tanto picasseana – o homem e a mulher, pintor-obra, arte x fracasso; quanto a glauberina – em cortar as amarras da razão, do conhecimento racional, do positivismo; obras que conseguiram antecipar um estatuto da imagem na contemporaneidade, onde integram e tornam legível o sentido da politização contemporânea. Talvez poderíamos afirmar que Glauber e Picasso se constituem por uma afinada sintonia profética, criadora, que é marcada pela radicalização poética em ambas as obras. Canto flamenco que nos conduz pelas ruínas de Guernica a belíssima paisagem da Catalunha.



1.3 - Glauber x Eisenstein:
A contribuição ideológica do cineasta russo Serguei Eisenstein13 no amadurecimento da dialética cinematográfica de Glauber Rocha é indiscutível; teoria que se justifica pela linha épica que lhe serviu de modelo não só pelo caráter político, mas também estético: retratos em preto-e-branco que denunciavam o sofrimento humano através de uma visão nova e democrática, que pudesse acompanhar as tarefas de transformação social; como nos revela em Encouraçado Potemquim, filme sobre a revolução de 1905; relato ficcional altamente carregado de emoção e rara beleza. Segundo Glauber :

“Eisenstein era tão puro que não tinha vergonha de dizer que sentia o verdadeiro êxtase da criação enquanto filmava o Potemkim, e acrescentou que quem tivesse filmado o Potemkim, sentiria a mesma coisa. Por isso Eisenstein realizou grandes filmes. Não teve medo, e sua principal virtude foi ousar a beleza. Os revolucionários são em geral reacionários em matéria de arte”14.


Espelho revolucionário que inspirou o cineasta brasileiro em praticamente todos os filmes que realizou, Eisenstein “esteve sempre presente”; seja pelos enquadramentos que “quase estouram de tão densos”, seja pelo compromisso de pôr o cinema a serviço das causas importantes do seu tempo; espécie de máscara trágica que se solidificou em Glauber através de uma representação humana de civilização eternamente em luta e sempre em mudança. Experiência que ele mesmo revelaria em 1976 em uma carta ao crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes:

“(...) foi o mito Eisenstein que me fez cineasta. Simples. A complexidade foi não entender isto. Primeiro quando era jovem me identificava fisicamente com suas fotos. Depois os filmes. E os livros que li e reli durante a vida sem nunca entender bem. Conscientemente. E a revolução. Foi lendo seus artigos sobre o Cinema Soviético naquela célebre retrospectiva que eu tomei conhecimento da revolução”15.


Política e arte serão sempre parceiras adversas e, certamente, o mundo teria visto muito mais destes dois gênios se a brutalidade dos tempos, em que estiveram vivos, não os tivesse tolhido de forma tão recorrente. Eisenstein morreu aos 50 anos e Glauber aos 41.

1.4 - Glauber x Brecht:
Não poderíamos encerrar este capítulo sem falar sobre o dramaturgo alemão Bertold Brecht16 e seu didatismo transformador; inteligência intelectual que via na superidade cultural da comunicação, a destruição ideológica do inimigo (refiro-me, nesse caso, as injustiças sociais causadas pelo nazismo que atentavam contra a liberdade do mundo); visão dialética e materialista que se instaurava através de uma perspectiva marxista, de depoimento e documentação, conferindo ao espectador o papel de juiz. Teatro que sempre esteve a serviço da classe operária e da revolução social. Relação que nos permite, talvez, considerar Galileu Galilei, como uma obra que mais consiga aproximar arte e ciência; e ao mesmo tempo, reverberar a importância em conjunto do sentido épico-didático; ponto chave da teoria brechtiana; ou seja, informar para converter.
Uma atividade política apaixonada que influenciou diretamente Glauber Rocha; como observamos em parte da carta-proposta do cineasta brasileiro para a produção do filme O Nascimento dos Deuses, projeto originalmente proposto a RAI (Rádio e Televisão Italiana) e que sofreu várias modificações, servindo de base para algumas idéias que aparecem no filme a Idade da Terra:

“Do ponto de vista artístico pretendo utilizar a fonte de interpretação Épica, inspirada no teatro de Bertold Brecht, e a técnica de montagem dialética inspiradas nas teorias de S.M Eisenstein. Todos os meus filmes são baseados neste método, que considero os únicos exemplos da estética marxista. Através da relação estética entre Brecht e Eisenstein é possível obter a síntese do espetáculo revolucionário que se opõe, pelo conteúdo e pela forma, ao espetáculo idealista do cinema imperialista”17.


Sabemos, portanto, que tanto Brecht quando Eisenstein serviram como fonte inesgotável para Glauber; relação especular intensa e revolucionária que ainda assume um caráter imprescindível na produção de conhecimento cientifico em nossa época.









Notas
8James Joyce, escritor irlandês, é considerado um dos principais escritores do séc.XX. Autor de dois trabalhos extremamente importantes para a literatura universal: Ulysses, publicado em 1922, e Finnegans Wake, publicado no começo dos anos 1940, pouco tempo antes da morte de Joyce. Este último, segundo alguns estudiosos, se traduz como um verdadeiro quebra-cabeça literário; espécie de “nova literatura”, pelo número de frases expressões criadas. Para ver mais sobre isso: Burgess, Anthony. Homem comum enfim: uma introdução a James Joyce para o leitor comum; tradução de José Antônio Arantes. São Paulo: Companhia das letras, 1994.

9Pablo Picasso, artista espanhol, nascido em Málaga, Sul da Espanha, em 25 de outubro de 1881, se tornou o artista mais versátil do séc.XX. De 1901 a 1905 na chamada fase azul, pintou a pobreza, a cegueira, a alienação e o desespero. Na fase rosa (1905 – 1906) suas telas retratavam acrobatas, dançarinos, arlequins, artistas de circo. Em 1907 Picasso revolucionou o mundo da arte com as donzelas de AS DONZELAS DE AVIGNON. Ainda temos a fase cubista e quando, atento a novas correntes (Expressionismo, Surrealismo, Arte abstrata) alterou seu estilo de pintura (fonte: site Colégio Rainha da Paz). Para ver mais sobre isso: Fagundes Jr., Carlos E. Uchoa. O beijo da história: Picasso como emblema da contemporaneidade. São Paulo: Ed. 34, 1996.

10idem, ibidem. Em 1936, a Guerra Civil Espanhola começou e o artista apoiou o Governo Republicano contra o militarismo de Franco. Foi nomeado diretor do museu do Prado e Governo encomendou um mural para o Pavilhão Espanhol da Exposição Internacional de Paris. Em 26 de abril de 1937, os bombardeios nazistas a serviço de Franco arrasaram a pequena cidade de Guernica, deixando 2.000 mortos e milhares de feridos. Nasceu Guernica, uma grande obra mural, contra a opressão e violência desencadeada pela guerra.

11Rocha, Glauber. Cartas ao mundo; organização Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 738. Filmografia do cineasta.

12Gomes, J. Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 443. Glauber menciona o clássico surrealista L’age d’Or (1930) que Buñuel filmou com Dalí; filme que foi proibido na França por seu conteúdo anárquico, depois de poucas semanas de exibição.

13Serguei Eisenstein foi o primeiro grande esteta que a arte cinematográfica produziu. Em numerosos aspectos, situava-se muito além de sua época, como um dos cineastas mais audaciosos e mais completos que já se conheceu na história do cinema mundial. Nasceu na Letônia em 1898 e faleceu em 1948. Freqüentou a Escola de Engenharia da Petrogrado, estudou arquitetura e teatro. Dirigiu e criou uma série de obras primas: O Encouraçado Potemquim, Outubro, Ivan, o Terrível, cuja terceira parte não concluiu, Que Viva México, também não terminado, e Greeve, que foi um dos seus primeiros filmes. Para ver mais sobre isso: Eisenstein, Serguei. Reflexões de um Cineasta; tradução de Gustavo A. Doria. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

14Apud Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.406. Glauber invoca a liberdade criativa de Eisenstein.

15Apud Rocha, Glauber. Cartas ao mundo; organização Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Transcrição da carta a partir da página 580.

16Bertold Brecht iniciou sua obra e sua atividade política, intimamente ligadas durante toda a sua vida. Poeta, romancista, um dos maiores autores teatrais do séc.XX, militante político, pensador dialético, teórico do teatro e da arte, diretor – morreu dia 14 de agosto em 1956 em Berlim Oriental. Talvez Galileu Galilei* seja uma de suas mais importantes obras dramáticas; * história de um Homem que, perseguido pela inquisição, atirado no cárcere, diante dos instrumentos de tortura, se viu na contingência de renegar as próprias idéias. Estilo épico que influenciou diretamente o cinema de Glauber Rocha. Para ver mais sobre isso: Bader, Wolfgang. Brecht no Brasil. Experiências e Influências; introdução e organização Wolfgang Bader. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

17Apud Rocha, Glauber. Cartas ao mundo; organização Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Transcrição da carta a partir da página 511.

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