quarta-feira, agosto 20, 2008

A poesia caótica do Movimento

O meu diagnóstico para a educação e identidade verificadas no quadro político atual, se inscreve na urgência em reproduzir o movimento da cidade do Rio de Janeiro sob uma NOVA perspectiva; atualizando o debate sobre como é encarada a miséria social pelo senso comum; a omissão e indiferença do poder público, o gesto paternalista do Estado, o assistencialismo demagógico das Ongs e da Igreja Católica; articulando essas observações como sintoma de um processo histórico colonial escravocrata, que se refugia, hoje, num julgamento moral anterior, estéril e ineficaz. A celebração feérica dos 200 anos da chegada da família real aqui no Brasil, ao invés de promover uma reflexão crítica sobre a dívida histórica da opressão portuguesa, se concentra no recalque inconsciente do discurso oficial sobre uma herança européia, branca, aristocrata e “civilizada”; pensamento ainda hegemônico nas práticas e representações sociais do cotidiano e nas relações de poder. Nesse sentido, devemos respeitar uma formação social do indivíduo ancorada radicalmente no “positivismo” de Auguste Comte (lembremos da bandeira nacional!) ou sugerirmos uma nova idéia, um novo tipo de materialismo cultural, libertário e humanista? A fisionomia urbana não pode ser admitida como metáfora de nossa cidade sem observamos que a mesma é o reflexo de uma sucessão de anacronismos que precisam ser reeditados; dívida histórica de um legado perverso cuja omissão se apresenta de forma contraditória, incoerente e repetitiva. A lógica da inclusão social é a marca ideológica da mentalidade (neo)liberal-republicana (de John Locke até Milton Friedman), admtindo a tese de que as classes subalternas ou aqueles que estão “fora” do movimento de acumulação capitalista precisam ser “incorporados” ao processo de produção, sem observar que os mesmos já foram afetados por este sistema econômico que controla o Brasil. Logo, a especulação financeira, a prosperidade econômica das grandes corporações industrias e as leis que regem o mercado tornaram-se as grandes vedetes no discurso da imprensa burguesa, naquilo que se traduz como “síntese progressista”; tal incoerência reflete não apenas a parcialidade, a sujeira e o autoritarismo de uma liberdade idealizada, mas a uma crise nos códigos linguísticos daquilo que entendemos como informação – no que se refere aos fenômenos da cultura – e, ao mesmo tempo, a crise na ideologia com a qual esses códigos se identificam. É preciso entender o professor e o jornalista como intelectuais orgânicos. Qualquer tipo de pedagogia educacional que não absorver Antônio Gramsci dançará na estória; esquecendo-se de se apresentar, não só, como desejo de ir fundo na psicologia social, antropológica do Rio de Janeiro a partir da “topografia” da cidade; mas de criar algo experimental, fora das teses por encomenda e do romantismo acadêmico.
A apresentação da crise, a perspectiva histórica, e o repúdio à simulação de um cotidiano metonimizado pelo jornalismo tradicional, devem se tornar as bandeiras nesse caminho por uma nova Educação Libertária; sem o moralismo e a conveniência da estabilidade social que prejudiquem o compromisso com a arte. A história é o movimento que responde ao estatuto de uma oficialidade que se construiu a partir dela e através dela se auto-legitima; porque ela própria se constitui como discurso de poder. O professor-jornalista, aqui, é aquele que não pensa mas que grita através de textos, imagens e sons. Deixemos o racionalismo Cartesiano! A razão nos aprisiona! Ao invés de Descartes precisamos de Breton. Ler não apenas Sheakespeare e Pirandello, mas principalmente Brecht e Meyerhold. Precisamos sair do palco italiano! Então o que sugiro é isso: vários gritos de repúdio à teatralização de uma “verdade instituída”; porque o poder se ocupa da verossimilhança banal do cotiano psico-sociológico e a transforma em falsas expectativas. O signo é a subversão da idéia porque essa mesma idéia é uma representação que emergiu do próprio signo. As aquarelas, os escritos e as telas pintadas por Debret, além de toda representação pictórica que emoldura a racionalidade da nossa historiografia, formam um patrimônio histórico eurocêntrico e etnográfico de um romantismo tropical que alimenta todo o nosso repertório simbólico. Ao invés de negros pobres miseráveis e escravos, o exotismo de uma etnia bem comportada; os atabaques, as danças e os cânticos deram lugar ao gosto religioso pelo misticismo eclesiástico. Sob um olhar mais cuidadoso, vemos que a marca fenotípica africana se esconde pela cumplicidade servil nos traços do homem branco europeu. O Teatro de Debret é uma alegoria falaciosa da cidade do Rio de Janeiro e do que nela se pode traduzir; não apenas nos afrescos da ordem pitoresca imperial mas na miséria social que se sobrevive até os dias de sempre. Discutir a representação histórica do Rio de Janeiro será o mesmo que admitir a possibilidade do seu desaparecimento ou de sua “morte”. Eis o que a Educação Libertária se propõe: inventar uma outra cidade; mas para fazê-lo, o tumor precisa ser extraído e mostrado. Sem a exposição do trauma não há cura. Somos historicamente a ficção dada pelo o outro; o mesmo que nos oprime. Logo, construiremos um outro discurso que responda intuitivamente ao sintoma; o trauma é o sintoma. O confronto permanente entre a verdade-mentira instituída e a mentira-verdade reprimida. Não é apenas uma idéia, é um manifesto onde se contesta uma razão dominadora. Imagens e sons que, desarticulados, pintarão um outro quadro-síntese da complexidade de nosso tempo. A população conduzirá o pincel na expressividade caótica de sua angústia. Não será processo trágico mas sobre aquilo que inspira a tragédia humana, uma postura mais realista e experimental das coisas. Movimento heterogêneo de imagens captadas e estranhamento reflexivo; sincretismo filosófico cuja finalidade tem como ponto de partida a criação livre, onírica e dialética. A estrutura é a anti-estrutura porque o sentido tradicional da informação se prende a esquemas conceituais que limitam a carga subjetiva do que se pretende mostrar. Não há início, não há o mito fundador; o que existe são fluxos, feixes, sombras. Portanto, a genealogia é a subversão da própria idéia genealógica. A imagem livre, em composição permanente com outras imagens na promiscuidade do movimento. O conflito não se traduz como tensão dramática mas na irradiação metafórica do próprio signo em conflito; que aponta para lugar nenhum e todos os lugares ao mesmo tempo; porque ele próprio é o devir que reagirá contra a experiência traumática das formas. Espectro que surge na intenção da mudança, do choque, da obra aberta, intelectual e engajada que provoque uma discussão ativa, lúcida e histórica sobre os fenômenos que envolvem a complexidade do nosso tempo. Essa coisa de problematizar a identidade cultural brasileira sem trazer Oswald de Andrade ou Graciliano Ramos fica, também, muito esquisito. Penso em várias coisas. Deixarei, entretanto, para uma outra ocasião.

quarta-feira, julho 23, 2008

Infiltrações!

Vale dizer, em primeiro lugar, que é um texto que analisa o filme “The Departed” (Os Infiltrados/2006)1 de Martin Scorsese (Oscar 2007 de melhor diretor); espécie de crônica policial/suspense que toca no individualismo, no preconceito racial, social, de gênero, na imigração e na crise de identidade nos tempos da globalização; sinalizando, inclusive, uma disputa (ou integração?) tecnológica e, também cultural entre Eua e China; mantendo, ironicamente, um tipo de conservadorismo histórico, nacionalista e demagógico muito particular à indústria cultural norte-americana; mesmo depois da guerra fria. O elenco espetacular (Leonardo Di Caprio, Matt Damon, Jack Nicholson) não absolve o tipo de psicologia da sociedade que eles representam; universo multicultural onde o sofrimento, a frustração e impotência dos personagens derivam da falsidade de um sistema que necessita funcionar, “nos dois lados”, com alta produtividade e eficiência. Scorsese consegue tratar o lícito e o ilícito como um problema ético do tipo “spinosita” onde a liberdade e o livre arbítrio se chocam no esvaziamento dos conceitos de perfeição e imperfeição, valor e desvalor, bem e mal no seu tradicional significado. A dialética da infiltração é a não existência de uma fronteira concreta ou simbólica que determine as coisas. Tudo é falso! Nesse sentido, a preocupação objetiva será discutir a narrativa do filme, resumidamente. Começamos na relação entre montagem e roteiro; gênero baseado, aqui, nas emoções fortes, nos sentimentos e no naturalismo. Logo em seguida, o uso dos flashbacks nos permitirá entender como este recurso justifica, endossa aquilo que está sendo contado; e que, ao mesmo tempo, a dimensão espaço-temporal simula uma quebra cronológica sem, no entanto, sair dela. Num terceiro momento, a composição de imagens, articulação expressiva e simbólica, tomam lugar. E por último, entender a relação dos blocos dramáticos; condensação de imagens e sons em movimento que, juntos, constroem o resultado final da obra cinematográfica.


1)Relação Montagem/Roteiro:

Vemos o teatro e da literatura como heranças de uma tradição cinematográfica que submetem o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto a possibilidade (do espectador) de sentir o aspecto ideológico do que foi exposto. Um filme de ação e violência pede isso; ao contrário estaria transgredindo toda liturgia comercial que inspira o cinema norte-americano desde os tempos de Griffith; e o roteirista William J. Monaham e a montadora preferida de Scorsese, Thelma Schoonmaker, conseguiram reelaborar juntos, nessa idéia, uma melodia bem orquestrada que resultou no Oscar de melhor montagem e de melhor roteiro adaptado para uma espécie de thriller policial que afirma essa conjugação simbiótica entre teoria e prática; mesmo sabendo das modificações e problemas que sempre ocorrem no momento da filmagem. A antinaturalidade do filme se traduz na montagem dinâmica, pela consecução e pela ênfase através daquilo que não se mostra diretamente: o sentido informal das coisas, o deslocamento, a perda de referencialidade; daí o tráfico do microchip como propósito de identificação e integração dos circuitos. A profundidade psicológica é um outro dado que nos ajuda a pensar um tipo temporalidade em desconstrução.


2) O uso de Flashbacks:

A temporalidade em permanente deslocamento acompanha a uma tendência histórica, típica da modernidade, numa quebra do cronológico em direção a instantaneidade e onipresença dos acontecimentos. Uma questão curiosa seria a genealogia dos detetives Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) e Colin Sulivan (Matt Damon); que acontece em poucos minutos, ajudando a construir e apresentar as suas respectivas “qualidades e defeitos” para o espectador. Embora exista uma série de paralelismos que simulem uma justificativa formal para as ações na dinâmica do antes e depois, o que temos, no filme, é uma síntese do presente em constante transfiguração. Não que todas ações aconteçam no mesmo tempo; mas na perspectiva temporal que as condensa, estica a duração e prega uma natureza variável do tempo; que o torna tão falso quanto os personagens. Nessa medida, é o nosso psiquismo que constrói essas relações; pensamento segundo regras de análise e síntese que, sem o instrumento cinematográfico, o homem teria sido incapaz de realizar.


3) Composição de imagens:

O corte invisível funciona perfeitamente e não se perde na dinâmica que ele mesmo sugere: a de compor as diferenças. Interessante percebermos no início do filme uma espécie de epígrafe que situa o espectador sobre um tipo de conflito social em Boston. Relação onde as imagens e o estilo testemunhal sugerem uma intervenção semelhante ao documentário; personagens em sua maioria negros e anônimos falam do preconceito que os divide, imagens da polícia, ônibus apedrejado forçam uma compreensão “realista”; espécie de crítica que toca na sensibilidade do espectador sobre o atual estado das coisas. Logo em seguida um texto em off de Frank Costello (Jack Nicholson) serve de ligação para que ele se apresente já na “ficcionalidade” como um dos protagonistas. A temperatura de cor se modifica sublinhando o espaço do documentário e da ficção, que se fundem. O simbólico funciona num ritmo em que as imagens também agridem umas às outras ratificando um sintoma pesado, canceroso. De que maneira nós poderíamos identificar a diegese e a extra-diegese como propostas “equivalentes” numa estrutura clássica? Se a diegese do filme nos coloca numa trama policial, a extra-diegese nos diz que as relações humanas promovem um estado de coisas onde o crime é o desequilíbrio, a vertigem, o princípio de complexidade e de estranheza; tudo se desliga e liga numa indiferença total. Não existe afetividade nem tampouco transparência, somente conexões frias e anômalas. As imagens não se compõe na presença afetiva do discurso mas num tipo de comportamento artificial em forma de jogo; onde as pessoas não se trocam, se conectam, apenas.


4) Relação entre os blocos dramáticos dentro do filme.

O paralelismo e a elipse foram os recursos utilizados em quase todo o filme. Situações que podem ilustrar essa idéia, acontecem no momento em que o Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) descobre que Colin Sulivan (Matt Damon) é o policial corrupto infiltrado. Os dois estão conversando no departamento de polícia quando Colin Sulivan pede licença e vai para uma outra sala para verificar no computador, sigilosamente, o registro sobre o histórico de Costigan. No mesmo tempo em que ocorre esta ação, Billy Costigan, sozinho, reconhece, em cima da mesa de Sulivan, o envelope que ele próprio tinha escrito e entregado para a quadrilha de Frank Costello com as suas próprias informações (nome completo, seguro social, conta bancária...). Intrigado, ele sai da sala, nota que Sulivan está, ainda no outro espaço verificando a sua ficha e vai embora. Sulivan então termina e volta para entregar o registro, impresso, para Costigan e percebe que ele fugiu por ter descoberto o segredo. Na mesma hora, Sulivan entra, novamente, no sistema e apaga o histórico de Costigan. Logo em seguida uma elipse ocorre; e vemos, já em outro prédio, Costigan entregando à Madeleine (Vera Farmiga; psicanalista e mulher de Sulivan com quem ele teve um flerte) um outro envelope que deve ser guardado e só aberto quando ele pedir ou em caso de emergência. Essas duas cenas embora descritivas quebram o raccord alguma vezes com a finalidade, acredito, de aumentar a intensidade dramática e a expectativa sobre o que irá acontecer depois. Tudo é falso! Até os cortes. A dramaturgia não se traduz na incerteza enquanto discurso “racional” mas no efeito emotivo em que essa incerteza opera; e, de alguma maneira, os blocos conseguem se comunicar agressivamente obedecendo uma estética clássico-narrativa menos previsível. Acho que Scorsese de alguma maneira quebra o teorema da equação exata e reativa uma contigüidade que fotografa o inconsciente coletivo de uma modernidade onde ninguém pode ser absolvido de nada. Muito menos a igreja católica. Ele afirma isso no signo, na técnica, em cada fotograma; chegamos, enfim, a um tempo onde as coisas passam do domínio da lei (a ordem, a verdade, o capital, o valor, a economia, o significado) para o domínio da regra (o jogo, o rito, o cerimonial, o ciclo, a repetição). “Os Infiltrados” é a própria encenação do falso. Os blocos dramáticos nada mais são do que circuitos integrados em planos que conduzem o destino dos acontecimentos sem destino. Não existe o crime perfeito, nem final feliz, nem os rostos; restam, apenas, as máscaras.


Notas


1. Filme baseado no roteiro de Siu Fai Mak e Felix Chong.


Bibliografia


1. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


2. REISZ, Karel.; MILLAR, Gavin. A técnica da montagem cinematografica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

sexta-feira, julho 11, 2008

A potência do Falso e o Trompe-l'oeil

Ao tomarmos, resumidamente, como objeto de análise F for Fake, vemos que a tão cultuada abstração utópica pela verdade se desmancha no seu próprio exorcismo. Não se trata, apenas, de confundir o real; trata-se de produzir um simulacro em plena consciência do jogo e do artifício, instaurando a dúvida sobre a realidade da terceira dimensão, imitando e ultrapassando o efeito do real. O ilusionista e a criança deixam claro essa predisposição à dúvida radical sobre o princípio de inteligibilidade. Tudo é falso! Logo, posso simular todas as coisas. O verossímel consiste em uma dialética do verossímel e do inverossímel. O inverossímel consiste na negação dessa dialética, na desunião radical do verossímel e do inverossímel e, por via de consequência, na autonomia do princípio do inverossímel. Enquanto o verossímel supõe a cumplicidade dialética do inverossímel, o inverossímel fundamenta-se em si mesmo, em plena incompatibilidade. Logo, Orson Welles é o mestre do jogo e é, ele próprio, enquanto imagem, o princípio do inverossímel; reinado onde triunfa absoluto. Seu filme se impõe como “sedução”; que é a figura bem mais radical de desligamento, de distração, de ilusão e de desvio; de alteração da essência e do significado, de alteração da identidade e dos sujeitos (Ele é Americano ou Mexicano? Lembre-mo-nos de “A Marca da Maldade1”). Logo, a “sedução” proposta em F for Fake é o excesso do outro e da alteridade, é a vertigem do mais diferente que o diferente (e partir daí toda a discussão sobre a autenticidade da obra de arte). Diante disso, a expressividade não está na imputação das coisas a uma instância significativa mas na relação de estranhamento de cada uma delas no tempo e no movimento.

Welles nos conduz na própria ironia de aprender as coisas, mas ironia suspensa, abstrata, tornada metafísica. Os objetos do trompe-l'oeil guardam a mesma fantástica plenitude da descoberta de sua imagem pela criança, algo de uma alucinação imediata anterior à ordem perspectiva. Importante situarmos esse devir-criança; não tanto esquematicamente como pensou Espinoza, mas de uma relação que deveríamos imprimir sobre as coisas e elas sobre nós. Tal como Picasso pintou, sem juízo, pelo prazer; e o filme evoca uma espécie de cubismo analítico; pela decomposição e pela falta de compromisso com a forma. Vemos que, ao contrário de todo o espaço da Renascença, que se organizara segundo uma linha de fuga em profundidade, no trompe-l'oeil de F for Fake o efeito de perspectiva é de alguma forma projetado adiante. Ao invés de os objetos fugirem panoramicamente diante do olho que os varre, aqui são eles que “enganam” o olho por uma espécie de relevo interior; não naquilo em que fariam acreditar num mundo real que não o é, mas naquilo em que frustram a posição privilegiada de um olhar. Essa frustração aceita pelo olhar é motivada pela crença; “orientação psicológica e motora previsível” de que, também, Deleuze toma parte na oposição do sensório motor tradicional e as situações óticas sonoras. O olhar é traído naquilo que pensa que vê; tal como Narciso o foi quando deparou-se com seu duplo refletido no espelho d'agua; alteridade radical, morte da representação pelo outro eu-imagem. O próprio Orson Welles se coloca como figura espectral e debocha de si mesmo representação; tal como Renée Magritte (Ceci n'est pa un pipe!) com a inexistência das propriedades do signo representado. Tudo é falso! Logo, aquilo que o pintor belga surrealista sugere dialoga com o filme porque esvazia a potência sedutora da forma-sentido e reativa a potência sedutora da expressão-composição. Tudo podemos ver, menos um cachimbo. Tudo podemos crer, menos nas verdades. Logo, em nada devemos acreditar. Devemos morrer como realidade e nos produzir como engano pela imagem; porque somente através dessa negociação sensual e incestuosa com ela, com nosso duplo, com nossa morte, que ganhamos nosso poder de sedução: o de viver a antinaturalidade das coisas.
Bibliografia de apoio:

1.Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.

2.Bosi, Alfredo. "Fenomenologia do Olhar" in Novaes, Adauto. O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

3.Debray, Regis. Vida e morte da imagem. São Paulo: Vozes, 1993.

4.Machado, Arlindo. A ilusão especular. Introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Espinoza e o movimento

A subversão da forma pelo movimento, tema observado neste artigo, se insere como preocupação elementar nas discussões sugeridas sob o domínio da Filosofia Empirista; cujo edifício teórico nos permite refletir algumas idéias relacionadas a expressão; tendo como base o texto “Lembranças a um espinosista”1.; discutido, neste trabalho, de forma livre, anti-acadêmica, porque avesso a qualquer tipo de sintoma imobilizante no processo de articulação dos fenômenos da cultura; em especial o Cinema; admitindo a hipótese de que o pacto que rege atualmente as operações do pensamento é o da crise nos modelos de representação e anti representação. O termo crise é posto, aqui, como módulo divisório entre duas categorias elementares que trabalharemos em conjunto: a primeira diz respeito a tudo aquilo que pertence ao domínio da linguagem e da razão. Nesse lado temos a experiência traumática das formas e a impossibilidade de superarmos a fragilidade esquemática de suas representações que, apoiadas na redundância do significado, as paralizam através de códigos e meta-códigos. Temos nessa metade a operação de Lévi-Strauss (Antropologia), Vladimir Propp (Literatura) e Nikolai Trubetzkoy (Morfologia); prática onde se permite determinar uma estrutura homóloga no interior de uma dada ordem de fenômenos, além da condenação peremptória das formas. Diferente disso, a segunda categoria se revela na expressão; sendo, portanto, vetorial, performática; fora dos pontos e das coordenadas; fazendo fugir em todas as direções; não existindo contorno algum; apenas a simulação radical de todas as coisas em planos de composição que, pelo vigor, nos traga uma espécie de recompensa sensorial e criativa; porque a idéia de gozo não está no sentido mas na potência estilizada das imagens. Nesse contexto, o espelho não se permite refletir coisa alguma mas todas as coisas; anamorficamente. Logo, essa díade linguagem x expressão, resumidamente introduzida, serve de parâmetro àquilo que Espinoza observa como movimento x repouso.



1. Fazer do movimento um dado imediato da imagem é entender a sua relação com o repouso; ao mesmo tempo que admitir o Cinema como dado imediato da expressão é entender a sua inclinação desconfortante para a linguagem. Debate permanente sinalizado por Espinoza cujo princípio elementar se define em planos composição. Vejamos:


“É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimentos absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando nesse ou naquele agenciamento individuado, de acordo com os seus graus de velocidade e lentidão”.2


A qualidade transgressora do Cinema é a própria imagem em seu desejo pelo choque do pensamento (lembrei-me de Eisenstein!); que recolhe o essencial de outras artes, herda o necessário e converte em potência o que ainda só era possibilidade.



2. A natureza é a anti-natureza que se decompõe no choque de movimentos em direção ao pensamento; célula múltipla e divisível onde:


“...cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O Plano de consistência da natureza é uma imensa máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são agenciamentos ou indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas.”.3


Películas no esquema abstrato onde o choque tem um efeito sobre o espírito, ele o força a pensar e a pensar o todo. Esse todo é o próprio sentido do filme; representação indireta do tempo que decorre do movimento. Alain Resnais soube explorar esse tempo acronológico sob uma figuração essencialmente cubista, fragmentada no seu filme “O Ano Passado em Marienbad”.



3. A montagem é no pensamento o próprio “processo intelectual”, ou o que, ante o choque, pensa o choque. Já a imagem, visual ou sonora, tem harmônicos que acompanham a dominante sensível, e entram, por conta própria em relações supra-sensoriais:


“Plano fixo de vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. (...). Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim polvo ou Sépia (...)”.4


A Plicatura Espinosista nos mostra que o orgânico tem por correlato o patético. É desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plástica, uma matéria sinalética, carregada de traços e expressões, visuais, sonoras, sincronizadas ou não; que redigem no abstrato aquilo que se afirma opondo e sobrepujando as próprias partes. Uma tela de Salvador Dalí nos serve como exemplo; aludindo à idéia surrealista de sintaxe pura.



4. O Cinema é sempre narrativo, e cada vez mais narrativo (o que é trágico!), mas é dysnarrativo (neologismo de Robbe-Grillet) na medida em que a narrativa é afetada por repetições, permutações e transformações detalhadamente explicadas pela nova estrutura. Todavia, uma semiótica pura não pode seguir as vias dessa semiologia, pois não há narração (nem descrição) que sejam um “dado” das imagens. É preciso notar que:


“Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com o desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com um fundamento escondido na profundeza das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem, com as multiplicidades ou individualidades que ele recorta.”5


A diversidade das narrações, para Espinosa, não pode se explicar pelos avatares do significantes, pelos estados de uma estrutura da linguagem que se suportaria subjacente às imagens em geral. Ela remete apenas a formas sensíveis de imagens e a signos sensitivos correspondentes que não presupõe narração alguma. Os tipos sensíveis não se deixam substituir por processos de linguagem. Jackson Pollock através de seu expressionismo abstrato é ruptura anárquica, labiríntica, pela composição.



5. A potência do falso na expressão só existe sob o aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras. Diante disso:


“A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõe um indivíduo, que o decompõe ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.”6


O indivíduo fará parte desta cadeia, numa ponta como artista, na outra como potência do falso (F for Fake de Orson Welles). E a narração não terá outro conteúdo senão a exposição desses falsários, seus deslizes de um a outro, as metamorfoses de uns nos outros ou em si mesmo. O escritor tcheco Franz Kafka atinge esta dimensão onírica e crítica em seu conto “A Metamorfose” onde “numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”



6. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Logo:


“..., o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida.” 7


As categorias de vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. A atitude cotidiana é o que põe antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador do termo. A attitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como esse fora infinitamente mais longínquo do mundo exterior. Personagem de Virgínia Woolf, Orlando, dorme homem e acorda mulher; ambigüidade permanente que traduz a dimensão desta passagem. O tempo Cronos é rompido na sua previsibilidade, assim com o gênero na sua vocação para um único estado de espírito. Nessa medida, um outro tempo, o tempo Aion, acronológico, fere o sentido preliminar da expectativa e nos lança na potência espetacular da crise; que é a própria negação da forma que determina o corpo, os órgãos que possui e as funções que exerce.



7. Enfim, chegamos ao devir-criança de Espinosa; que é o da experiência cognitiva em curto-circuito, da memória volátil, altamente experimental e do não julgamento. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela:


“Não se trata de animismo, não mais o que mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. (...). O Espinosimo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo.”8


O artista quando movido por este afecto, torna-se hóspede inconstante e aguerrido do sonho; entretanto, arrumá-lo, esquematizá-lo, seria o mesmo que destruir uma construção viva e prendê-la ao inteligível. O Cinema bem comportado é a criança que ainda não alcançou a espontaneidade anárquica dos movimentos; que, atingidos, exploram a dimensão pictórica do falso e do agenciamento explosivo na criação.



Conclusão


Apenas uma sombra que não pode ser vista!




Notas



1.DELEUZE, Gilles. Lembranças a um espinosista, I. In: Devir-Intenso, devir-animal, devir imperceptível. In: Mil Platôs 4. São Paulo, Ed. 34, 2005.

2. idem, pág. 41.

3. idem, pág. 39.

4. idem, pág. 40.

5. idem, pág. 39.

6. idem, pág. 42.

7. idem, pág. 39.

8. idem, pág. 42.




Bibliografia



1. BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.


2. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix,. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.


4. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.


5. DESCARTES, René. Discurso sôbre o método. São Paulo : Hemus 1972.


6. KAFKA, Franz. A metamorfose. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993.


7. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

8. MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982.

9. PROPP, V. IA'. (Vladimir IAkovlevich). As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: M. Fontes, 1997


10. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance . São Paulo : Nova Critica, 1969.


11. WOOLF, Virginia. Orlando. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

sábado, junho 14, 2008

Da matéria onírica


“O homem não é mais escravo da razão”.
Andre Breton
Limite1 é a emancipação pelo sonho. Pintura inacabada de Monet. Subversão da experiência na poesia impressionista das figuras. O sentido da fixidez revelado pelas algemas no filme, consagra a idéia de um cinema-ontológico preso a determinação estrutural; que morre logo em seguida para nascer uma ontologia pura, simples, que é a própria vida. Limite é o não limite porque foge as dimensões da moldura; instabilidade do universo que se transforma através de nossos olhos; sentimento infinito em permanente deslocamento que joga com a suposta imobilidade das coisas, das pessoas. Um barco refém atingido pelas ondulações nos traz a memória de um rochedo cuja erosão diagnosticada modifica o sentido do tempo. O devir rochedo é a sua constante exposição ao movimento das águas e do ar. Logo, a potência do filme está na ênfase sucessiva da antítese movimento x repouso, sem reconciliação; porque tudo é relação de movimento e de repouso, entre moléculas ou partículas, entre as árvores e o vento, de poder afetar e ser afetado. Quando Auguste Rodin esculpiu a “Mulher agachada” (1880-82), ele evitava uma aparência de acabamento, preferindo deixar algo para imaginação; como em toda a sua obra. Do mesmo modo o filme, tal como a escultura impressionista, nos transporta para a terceira dimensão na luz, na espontaneidade, na fragmentação e desintegração da forma operados; em algum momento, também, pelo jogo de luz e sombra. Impressões transitórias, sempre. Como neste poema de Manuel Bandeira:
“A onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda.”2

Sobre os movimentos europeus de vanguarda utilizados no filme, além do Impressionismo, vejo o Dadaísmo e o Surrealismo como ocupantes de um lugar especial; onde se destroem os sistemas baseados na razão e na lógica, substituindo-os por valores ancorados no primitivo e no irracional. Essa edificação do inconsciente, liberta de todas as amarras numa abordagem artística de imagens e sons, questiona o próprio estabilishment da arte numa dialética da memória; tornando os personagens rítmicos, autônomos e realizando, ao mesmo tempo, uma extraordinária paisagem em contrapontos complexos; acordes subtendidos ou inventados: é a máquina de costurar que se compõe ao rosto da mulher numa espécie de pulsação ativa do movimento (Lembrei-me de Vertov!), até o balançar das árvores pelo vento ou das telhas se compondo ao céu. Enfim, uma poética que Mario Peixoto cortou e recombinou em cada fotograma/verso com o objetivo, talvez, de dessacralizar o passado através das fantasias daquele mundo burguês tão estável no qual ele mesmo havia crescido; reação contra o retoricismo, a frieza das estruturas formais, o descritivismo inanimado e as exterioridades pomposas que, ainda, tem fundas raízes na nossa vida cultural; e o filme é, sem dúvida, uma reação atemporal contra o mau gosto nas artes.
Notas
1. Filme de Mario Peixoto;1931.
2.Extraordinário poeta modernista brasileiro. Ver mais em: BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1971.

Bibliografia

3. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

4. XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema: antologia. Organizador: Ismail Xavier. Rio de Janeiro: Edição Graal: Embrafilmes, 1983.

terça-feira, junho 10, 2008

O digestivo e a impossibilidade estrutural do movimento


O filme se esconde na timidez e na falta de coragem em criar um argumento cuja profundidade filosófica inspire uma reflexão crítica mais realista; porque a trajetória do imigrante nordestino é forjada no jogo sedutor de uma obsessão reativa, cujo maniqueísmo vulgar nos toca, sempre, como falso. A dinâmica social sugerida por “Estômago” não atinge as relações de poder com intensidade, mas apenas como módulo ético, afetivo, entre aquele que manda e a obediência religiosa daquele que obedece; sublinhando, com isso, um certo tipo de inferioridade do homem provinciano; idéia já absorvida com facilidade pelo senso comum. Se Raimundo Nonato é representado como estatística, logo, pode ser pasteurizado semanticamente. Daí toda a facilidade e conveniência de um roteiro comercial. O sobre-trabalho, a exploração do homem pelo homem, não atingem o político mas um tipo de ajuste entre a aparência das coisas, o conflito não aprofundado e o jeitinho como estratégia de disfarce. Essa lógica, quando posta em movimento, subtrai as contradições e superficializa os elementos da estrutura. A suposta relação de poder sugerida no filme, longe de postular uma crítica social na estória narrada, anula a dimensão conflitiva; mergulhando no exotismo, no fetiche, no paralelismo e no melodrama.
O signo alimento tenta atingir a dimensão do erótico porque se articula como fetiche do sexual; não apenas através de uma suposta “falocracia”; mas do signo sexo enquanto potência discursiva, sempre em forma de “jogo” (muito longe do sentido de Jorge Luis Borges). Tal como o feminino que, encerrado negativamente numa estrutura enfraquecida onde se encontra aprisionado, não recobre uma “autonomia” de desejo ou de gozo, nem tampouco reivindica a sua verdade; apenas seduz. A prostituta Iria, nada mais significa do que aparência; logo, é o feminino como aparência que põe em xeque a profundidade do masculino. Diante disso, o que há, no filme, é sempre a tentativa de captar e imolar o desejo do outro; da impotência enquanto sedução. Desafetos, neuroses, angústia, frustração. Tudo o que a psicanálise encontra, sem dúvida, provém do fato de não se poder amar ou ser amado, de não se poder gozar ou se proporcionar gozo; mas o desencantamento radical da sedução e do seu fracasso. Neste sentido, o que sobrevive ao invés da máscara, do disfarce e da simulação, é um tipo de asfixia estrutural, esquemática, fixa; no charme da gastronomia de botequim, do restaurante sofisticado ou do almoço na cadeia; enfim, tudo aquilo que coopera para se justificar no desenho do flashback (relação da imagem atual com imagens-lembrança) narrado pelo personagem, cria um tipo de ficcionalidade que, também, se prostitui. O filme não consegue digerir aquilo que ele próprio expõe e soluça numa espécie de “morfologia”, cujo princípio de saciedade se exerce por meio de uma paixão fetichista. O roteiro de “Estômago” funciona; só não atinge o movimento das imagens; ao contrário, as paralisa. Neste sentido, a vida não é tocada; apenas o teorema do paladar.
O tempo Cronos do filme se bifurca em dois momentos paralelos, cúmplices; fixando os personagens e as coisas, desenvolve uma forma e determina o sujeito até a hora do crime. A narrativa se prende a este movimento porque é escrava de uma fidelidade auto-explicativa. Onde o teatro épico Brechtiano e, sobretudo, o literário são poucos explorados pelo que percebi. Como seria a originalidade de Borges em estender esse jogo a toda ordem social de “Estômago”? Onde vemos apenas uma estrutura de pouco peso, em vista da boa e sólida infra-estrutura das relações sociais respeitada pelo diretor, teríamos a reversão de todo o edifício; além do fazer da indeterminação a instância determinante. Já não é a razão econômica, a do trabalho e da história, já não é o determinismo “científico” das trocas que determina a estrutura social e a sorte dos indivíduos, mas um total indeterminismo, o do Jogo e do Acaso (metáfora da grande feijoada!). A predestinação semântica do filme coincidiria com uma mobilidade absoluta, um sistema arbitrário com a democracia mais radical; troca instantânea de todos os destinos, para satisfazer a “fome” de polivalência de nosso tempo que, ao invés de ser um tempo Cronos, estrutural e previsível, é um tempo Aion, indefinido do acontecimento; linha flutuante que só conhece velocidades; um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar.
A transgressão funciona como atitude à insuficiência discursiva do personagem Raimundo Nonato; na medida em que o ato criminoso nos surpreende por uma espécie de “formalismo bem comportado”, numa articulação essencialmente individualista e não como devir político-social. O “Antropofagismo” de Oswald de Andrade não foi digerido numa coerência estético literária inovadora; mas na repetição dos equívocos da historiografia convencional; devorar a carne para incorporar a força e, ao mesmo tempo, afirmação de um poder e destruição da diferença sobre o outro não adquirem um estatuto pedagógico-reflexivo. A “parte” da mulher comida e o vinho bebido, se compõem, numa espécie de atitude violenta e corrosiva, que poderia representar, talvez, um dos instrumentos de revide possível à cultura imposta pelo “colonizador”. Todavia, a sequência não consagra uma densidade psicológica que nos mova neste impulso. Muito diferente do romance “Palmeiras Selvagens”, de William Faulkner; se trabalharmos com a hipótese particular de um “Herói” entre a Dor e o Nada; onde encontraríamos a loucura e a ingenuidade eternamente modificadas em potências desafiadoras ao longo do percurso delirante das páginas/cenas. Longe desta possibilidade, o filme de Marcos Jorge não consegue atingir um tipo de fenomenologia da digestão; aliás, atinge no sentido Kantiano; através do objeto e de sua dedução lógica no contexto espaço temporal proposto. Muito diferente de Husserl onde os fenômenos físicos não têm intencionalidade e, nesse sentido, todo um processo de “Dispepsia” (má digestão nesse caso), se desenvolveria numa reflexão síntese dos aspectos perceptivos e funcionais do movimento do corpo.
Termino a minha análise sob a hipótese de que “Estômago” se contrapõe radicalmente ao texto “Eztetika da Fome”, escrito por Glauber Rocha; e, ao mesmo tempo, não absorve o fenômeno histórico; tornando-se, com isso, um filme comum.
Bibliografia
BARTUCCI, Giovanna. Borges: A Realidade da Construção: Literatura e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Prólogo de J.B.S. Haldane. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª edição, 1979.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

quinta-feira, junho 05, 2008

O espectro da ontologia brasileira


“(...) Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
(Hino Nacional - Carlos Drummond de Andrade)
Começa Serras da Desordem. Um ensaio etnográfico, antropológico desperta imediatamente os sentidos. Levi Strauss conduz com segurança o meu olhar pelo exotismo estrutural na figura do aborígene sob a experiência primitiva do fogo. Imediatamente, fui surpreendido; corte dos blocos de imagens articuladas; consecução e simultaneidade. Percebi o romantismo poético de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu; ritmo de um convívio tribal logo disperso pela chegada do homem branco. A diáspora se insurge neste exato momento de troca subjetiva: nasce o Índio; neologismo recuperado pelo “homem civilizado” que irá se legitimar freneticamente no percurso da opressão histórica discutida pelo filme; porque o espelho se quebra na experiência traumática do encontro. Aquilo que explode na tela, mais do que uma relação contraditória, irreconciliável, é a morte de uma narrativa histórica convencional, linear; também, a morte da alteridade radical da linguagem; porque já não existe mais duelo entre a linguagem e o sentido. Percebi, então, o impulso afetivo no permanente deslocamento espacial, simbólico e geográfico que, a meu juízo, não dialogam apenas com um tempo isolado mas com experiência afetiva que é articulada no movimento desse tempo; e, nesse sentido, a total perda referencial do presente ou passado, do mental ou físico. O princípio da espacialidade é diferente; tanto para o lado de Carapiru, quanto para nós. Logo, o filme de Andrea Tonacci tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginário; fragmentos da consciência onírica e empírica do diretor, que pintam, cirurgicamente, através de imagens e sons, cacos de uma iconografia histórica que não conseguiu, ainda, superar essa mesma realidade desintegrada; e aceita, com isso, uma abordagem romântico-modernista; justificada por reproduzir o mito do “bom selvagem” como expressão caótica do índio; característica muito presente, inclusive, na literatura de Sérgio Buarque de Holanda.
Existe uma revisitação à memória na instantaneidade e onipresença dos acontecimentos sugerida no tempo em que o filme está sendo exibido; pela capacidade de recusar o real e de propor a esse mesmo real outro cenário, onde a imagem dos seres, das cores sobre a tela, se liberam na mixagem transfigurada do movimento; espécie de antídoto contra o mito de uma consciência que não inspira nenhuma resposta, mas a vertigem circular entre dois mundos supostamente irreconciliáveis. A ficção Serras da Desordem simula o desaparecimento do índio através de um modo fractal de dispersão incessante, pelo deslocamento infinito da consciência e da própria ordem das coisas; já o documentário Serras da Desordem, nos diz que o peculiar e o fractal são o esquema atual de nossa cultura, e, por isso, o caráter estruturalista – como modelo de um sistema de diferenças – já não funciona eficazmente como aparelho científico de classificação de uma performance midiática, ondulante, da angústia gerada pelo filme. Diante disso, a promiscuidade entre ficção e documentário, índio e homem branco “flutuam” em inúmeras ramificações interpretativas; porque a desordem é o caminho, a voz iracundia que se perde na serra, que nos toca afetivamente pelo sentimento estético do anti-relevo, da anti-continuidade, do anti-significado. Realidades afetivas que ressoam livremente no jogo poético e antropofágico do movimento.
A idéia de progresso discutida em Serras da Desordem não está na ferrovia ou na fisionomia arquitetônica das grandes metrópoles; ela se traduz pela incoerência marginal deste progresso na tentativa medíocre de civilizar o índio; além de expô-lo como mercadoria exótica nos corredores do poder. É como se, no lugar de efeitos especiais, de acontecimentos imprevisíveis, Carapiru se acomodasse como protagonista no jogo irracional do teatro exemplar de nossa representação; onde os níveis de consciência coletiva fossem inteiramente efeitos midiáticos, regidos pela obstinação superficial da especulação. A alteridade torna-se, com isso, além de melodramática, auto-reprodutiva, auto-destrutiva. Vemos, então, que o desaparecimento do índio não importa desde que ele se reproduza na vitalidade da imagem; seja do cinema ou da televisão. Quando tal impulso é admitido, reconhecemos nessa tentativa frustrada um mecanismo de fuga inconsciente; onde estaremos condenados a simulação técnica do desejo e da consciência de si.
A boa fotografia do filme não representa nada; ela capta essa não representatividade, a alteridade do que é estranho a si mesmo, o exotismo radical do objeto-índio-homem-branco. Colorida ou em preto branco, a fotografia é o nosso exorcismo. Quando a sociedade primitiva tira as suas máscaras e a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens. Tonacci executa um tipo de fotografia que nos aproxima da mosca, de seu olho facetado e de seu vôo em linha quebrada. Somos a própria mosca varejeira a espreitar, através do filme, um cadáver em decomposição; ao mesmo tempo que tentamos reconstruir, como na anamorfose, a partir de seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada, suas linhas de fratura, a forma secreta de nossa tragédia histórica.
Serras da Desordem não termina porque foge às dimensões da moldura e, por isso, continua no fluxo da memória e do tempo em busca não de uma resposta, mas do devir permanente contra uma historiografia que tenta, sem sucesso, nos conduzir na poesia inacabada de nossa existência.
Bibliografia
1.BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro. Editora José Olympio, 1971.
2.ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro. Record, 20ª Edição, 1986.
3.FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Circulo do Livro S.A, 1933.
4.LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

sábado, maio 31, 2008

O Expressionismo e a Máscara Trágica

Tentaremos, aqui, especular, resumidamente, sobre alguns tipos de “afinidade estilística” entre o filme Macbeth, de Orson Welles, e a estética expressionista; pensando numa articulação cuja densidade pictórica repousa no trágico; onde a forma das coisas ocupa, disciplinadamente, um tempo sombrio, delirante; e os medos que atormentam a alma humana; sempre na perspectiva do anômalo, do sofrimento e da morte. Rebelião interior do protagonista; espécie de apoteose do falso. Moldura de uma brutalidade insana, onde o místico pontua uma experiência sensivelmente gótica, demoníaca e cruel nas falas, gestos, luzes, na cenografia, na música...; introduzindo uma concepção arquetípica, alegórica de um poder despótico; sustentado ironicamente pelo ódio e pela vingança.
Shakespeare é “transcriado” na medida em que o texto, adaptado de sua obra, se compõe às imagens e sons; onde o teatro e a literatura dão lugar ao cinema sem desaparecerem por completo. Observamos, com isso, que não basta traduzir o sentido as palavras: é preciso recriar o texto, restituir sua estrutura original em “outra forma”. Esse movimento aliado à deformação e análogo aos sentimentos de Macbeth, se lança, na tela, sob a forma de pinceladas dramáticas, ordenadas por uma tensão existencial profunda, alucinada; que podemos aproximar da pintura “O Grito” (Skrik), do norueguês Edvard Munch; pela angústia levada ao paroxismo; tom que representa um mundo interior sempre desarmônico. Outro exemplo importante, seria o de refletirmos o político e a psicanálise como duas formas indissolúveis, talvez, no discurso de Welles. Embora o espelho seja anamórfico, a dimensão narcísica opera de modo sensível no inconsciente de Macbeth, na medida em tudo pertence a esfera da sensualidade, do prazer, dos impulsos; e tem, como destino, ser contrário da razão – algo subjugado ou reprimido de alguma maneira, na busca cega pela honra e pelo poder.
O lado místico do Filme explora uma fantasia humana obscura (a profecia das estranhas irmãs), além de contrastes em preto-e-branco de forma vigorosa e original; superando, inclusive, minhas dúvidas quanto ao diálogo com o pintor alemão Emil Nolde; pelo espírito solitário e individualista e pela crítica social da arte, além de toda uma poética traduzida em motivos retirados do cotiano, nos quais se observam o acento dramático e algumas obsessões temáticas, psicológicas; como, por exemplo, o sexo (no que toca ao “protesto” subtextual de Macbeth contra a ordem repressiva da sexualidade criadora: “Quem é aquele que não nasceu de uma mulher? É esse que devo temer e ninguém mais.”) e a morte (O assassinato de Banquo como desejo do crime supremo, porque o mesmo estabelece, nesse contexto, a ordem da sexualidade reprodutiva e, assim é, na sua pessoa, o gênero que preservará, segundo a estória, uma linhagem de reis; nesse sentido, os filhos de Banquo – “aqueles que herdarão o trono”, devem, também, ser mortos). Tal circularidade tormentosa, inconsciente, leva Macbeth ao conflito da ambivalência; eterna luta do Eros e o instinto destrutivo, ou de morte; viés filosófico e psicanalítico no sentido de uma coexistência entre pulsões antagônicas que se fundem; o sublime é o trágico, a verdade é a mentira, o amor é a morte, o nirvana é o purgatório, o concreto é o irreal. A pintura de Nolde, "A Última Ceia" (1909), com figuras deformadas, cores contrastantes e pinceladas vigorosas que rejeitam toda espécie de comedimento, traduzem um tipo de expressividade rude, interiorizada pelo protagonista no filme. Como vemos nesta passagem:
“São profundos os nossos temores em relação a Banquo. Em sua natureza real, reina aquilo que devemos temer. Muito ele ousa e junto com seu destemido espírito, ele tem uma sensatez que guia seu valor, fazendo-o agir em segurança. Não há nenhuma outra, exceto sua existência que eu temo e, diante dele, meu gênio é intimidado como dizem que acontecia com Marco Antônio diante de César. Mas que se despedace a estrutura das coisas e que pereçam o céu e a terra antes de comermos nossa refeição com medo e de dormirmos no tormento daqueles terríveis sonhos que nos agitam à noite. Melhor estar com os mortos que, para ganhar nossa paz, enviamos à paz eterna, do que nessa tortura de espírito, nesse repousar em insone êxtase (...)”*.

Macbeth tem visões que, ainda vagas e indistintas, mostram o absoluto que está por trás da realidade sensível. Tudo acontece nas sombras da noite, da névoa sinistra. Algo muito parecido, neste aspecto, com “O Gabinete do Dr. Caligari.; filme de Robert Wiene. A contradição profética do destino faz-nos absorver sensações de desconforto; composição visual desarmônica, flutuante do espírito e do estado das coisas.
Termino sob o argumento de que a arte expressionista, sobretudo o expressionismo alemão, sintetiza uma interpretação filosófica, artística, literária, psicanalítica da modernidade; como Kafka, Wilde, Joyce, Proust, Balzac e tantos outros que, espalhados pela Europa, refletiram a complexidade de um projeto industrial, tecnológico de um mundo enfermo pelo Capitalismo. E Orson Welles atualiza esse debate, sob alguns aspectos, no filme discutido. Logo, terei, seguramente, o desejo de aprofundar essas questões numa outra ocasião.
Notas

* Macbeth. Filme de Orson Welles, 1948.

Bibliografia

1. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

2. GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

3. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
Site pesquisado:

http://www.geocities.com/contracampo/expressionismoalemao.html

domingo, maio 04, 2008

O Melodrama da Alteridade

Posições sociais, ritos de classe, repressão racial e sexual nos anos 1950. Longe do Paraíso inspira o rigor formal do clássico narrativo orquestrado pelo melodrama; lugar comum na história do Cinema Norte-Americano; de Griffith, Douglas Sirk, a Todd Haynes, o sentimentalismo açucarado reafirma essa tradição numa linguagem teatral, especular e literária. Entretanto, se a diegese do filme inspira essa dinâmica, o léxico conotativo rompe violentamente com tal postura; exatamente por sublinhar posições de confronto. Espécie de sobreposição pictórica onde a percepção Renascentista se mistura com os movimentos de vanguarda; numa só tela. O choque permanente entre o decoro público, familiar, rígido, hedonista, racionalista, com escalas cromáticas (sólidas) que definem a representação psíquica, estética das personagens, e a suposta “libertação” dessas exigências no percurso da experiência transgressora, inconsciente, manifestada pelo desejo (sentimento abstrato), faz-nos admitir tal possibilidade. O figurativismo Renascentista (Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt) acompanha a estrutura narrativa e “imita” a realidade concreta; porém, o sintoma é o irracional, o sensual, o sonho, o falso; chegando ao ilógico no percurso de uma incompatibilidade lúdica (Miró). Logo, esses movimentos articulados conseguem provocar uma reflexão sobre aquilo que está para além do visível, além da superfície, além das aparências. A simulação permanente de uma burguesia moralmente falida consagra aquilo que o filme tenta discutir: uma civilização ocidental repressiva, dogmática, preconceituosa, submersa, onde pessoas como Julianne Moore (Cathy Whitaker), Dennis Quaid (Frank Whitaker) e Dennis Haysbert (Raymond Deagan) se encontram.
O jardineiro Raymond pontua a sensação de hostilidade e estranheza que veste o olhar das pessoas no momento em que se aproxima; porque o racismo não existe enquanto o Negro permanece negro. Começa a existir quando o negro torna-se diferente, isto é, ameaçadoramente próximo. É aí que desperta a veleidade de mantê-lo à distância. O fato de estar presente a uma vernissage, reduto de uma “elite intelectual” branca, gera o desconforto e a necessidade de divisão no espaço simbólico. Mesmo sensível, bem articulado, a elegância e sofisticação de Raymond não sobrevivem a curiosidade pálida daqueles que, alheios ao universo da arte, simulam uma preocupação banal com a presença dele naquele espaço. O Sr. Deagan torna-se, então, um protótipo do negro que, embora discriminado socialmente, já absorveu os valores do cotidiano burguês. A etnia e o lugar social que ele ocupa na divisão do trabalho não pesam na constituição psíquica do personagem; apenas o resgate humanista da solidariedade e de um amor não correspondido por uma mulher branca.
Provinciana, submissa ao modelo tradicional, Cathy herdou a responsabilidade de cuidar dos eventos sociais, da família e do marido exemplarmente, sob os olhos atentos dos vizinhos fofoqueiros e das leitoras do Weekly Gazette, jornal da sociedade de Conneticut. Recolhida ao estilo idealizado pelos “bons costumes”, a falta de personalidade da “Sra. Whitaker”, nos mostra, inclusive, uma certa “discrição” no que se refere a atitude dela própria enquanto “mulher cidadã”; seu apoio a ANAPC (tipo de associação que luta pelos direitos dos negros) reforça um assistencialismo demagógico que não esconde a segregação racial naquela cidade. Embora a posição de Cathy diante do mundo seja de “quase” total recato, uma doçura infantil nos arrebata. Suponho que ela não lera “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir – publicado em 1949.

Figura central na trama, o executivo Frank Whitaker nos conduz pelo seu mundo tal como a experiência de Proust, Oscar Wilde e tantos outros. Energia dolorosa, marca vital a que chamamos de amor; sentimento íntimo, porém “incompatível” no filme. Amar outro homem ao invés da esposa gera desarmonia psíquica em Frank, motivada por um estágio repressivo do senso comum; que dá nome às coisas e a forma como se devem utilizá-las. O fato de ser casado, ter dois filhos, uma mulher solícita, além de uma imagem crível que deve ser mantida com todo o esforço, potencializa essa questão. No momento em que Cathy e Frank decidem juntos procurar um médico, estão obedecendo exatamente ao estímulo da incoerência padronizada do universo da diferença sexual. Logo, até o desejo precisa ser administrado, interpretado esquematicamente, mecanicamente, com o mesmo rigor gerencial do lar ou da empresa. Todavia, ao longo do filme, vemos que o predomínio já não é mais o da diferença ou indiferenciação mas o da incompreensibilidade eterna. A pouca luminosidade no “lar” do Sr. e da Sra. Magnatech traduz essa confusão dos gêneros; duelo entre a máscara e o vazio. Entretanto, se Frank, no início, provara o gosto de fel em se negar sob os efeitos da consciência moral e da obstinação terapêutica, no final, a sua decisão, ao contrário, assume e reconstrói a forma deste “Outro” eu. Daí nasce todo o jogo, todo o desafio, toda a paixão, toda a sedução no filme: do que nos é completamente estranho e que, todavia, tem poder sobre nós: o Outro.
Longe do Paraíso é um filme magnífico.
Bibliografia:
1.BALTAR, Mariana. Moral Deslizante: releituras da matriz melodramática em três movimentos. Sirk, Fassbinder e Haynes. Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho “Fotografia, cinema e video”, do XV Encontro da Compós, na Unesp, Bauru, SP, em junho de 2006 (mimeo).
2. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução: Sergio Milliet. São Paulo, DIFEL, 3ª edição, 1975.
3.DEMPSEY, Amy. Styles, schools and movements. Tradução: Carlos Eugêncio Marcondes Moura. São Paulo. Cosac & Naif, 2003.
4. WILDE, Oscar. A tragedia de minha vida. Tradução revista por Zuleide Faria de Melo. Rio de Janeiro : Biblioteca Universal Popular, 1964.
5.PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
6.SINGER, Bem. Melodrama and modernity. Early Sensational Cinema and Its contexts. New York, Columbia University Press, 2001.
7..XAVIER, Ismail. D.W. Griffith: O Nascimento de um Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984.

sexta-feira, abril 04, 2008

*Apontamento - Parte I: Intelectual. Orgânico ou Universal?

* Este artigo não contém as fontes de citação; a segunda etapa será postada em breve.
Rever alguns equívocos sobre o problema do intelectual na contemporaneidade, sua função histórica e pública, consagra, neste artigo, o meu interesse formal sobre este assunto – que teve uma certa "visibilidade", infelizmente, apenas, nos Centros Culturais, nas Universidades e nos canais de televisão por assinatura no ano de 2005; em razão, acredito, dos escândalos em que a cúpula do Governo estava envolvida e de um suposto "golpismo" que se insurgira contra o Presidente Lula naquela ocasião. Episódio que motivou uma série de conferências nas grandes cidades do país, onde a figura do intelectual era colocada em perspectiva; talvez, pela invisibilidade pública e pela falta de um "engajamento" ainda duvidoso deste personagem. Além de uma tentativa de recuperar no simbólico o papel histórico daqueles que seriam, ainda, os grandes "emancipadores" da consciência popular; tanto por uma suposta "virtude clerical" quanto pela organização e liderança em determinado grupo social ou político (posições que veremos ao longo deste apontamento). O fato é que, dois anos depois, a falta de interesse, injustificável, pelo assunto, negligencia, de forma criminosa, o debate aberto e democrático, assumindo uma condição unilateral e exclusivista, preconceituosa e, antes de tudo, classista. As interpretações gravitam aleatoriamente num campo puramente especulativo, antifilosófico, sem uma direção objetiva e concreta. Teórica, mas concentrada nas publicações inacessíveis ao grande público, além de um romantismo retórico que satisfaz, mesmo que parcialmente, as mais variadas intenções de forma equivocada. Porque motivo? Eu diria que, esclarecer o assunto de maneira ampla e irrestrita nos faria, segundo Spinoza, "deduzir corretamente as diferenças, concordâncias e oposições das coisas". E isso seria o mesmo que "balançar" uma espécie de "decoro" hegemônico, cuja finalidade inconsciente é a submissão de classe, além de uma série de pressupostos e interesses que lançam quaisquer discussões sobre o papel intelectual na obscuridade mórbida do conformismo e da incerteza. Diante disso, concentro-me nesta reflexão pela necessidade romper com uma ética acadêmica romantizada pelo idealismo burguês, para aderir, então, a uma nova experiência mais reveladora do ponto de vista cientifico; embora este texto seja anticientifico.
Mesmo verificando na antiguidade a presença de Tales de Mileto, Platão, Aristóteles e tantos outros que tiveram as suas devidas importâncias na vida pública e, também, na legislação em suas cidades, entendemos, todavia, o relevo das Idades Moderna e Contemporânea como recorte histórico mais apropriado para avaliarmos, com clareza, o papel dos intelectuais. A justificativa desta idéia está transição do Feudalismo para o Capitalismo; e tem como principais marcos a formação dos Estados nacionais modernos, as capitanias hereditárias, o renascimento cultural, a expansão marítima, a descoberta de novos territórios, as reformas e contra-reformas cristãs, o colonialismo, o surgimento das monarquias absolutistas, o Iluminismo e a independência dos Estados Unidos. O Mundo Moderno representou de forma explosiva as contradições entre o Capital e o Trabalho, assim como a contemporaneidade representa o vazio utópico e colérico desta bipolaridade. A partir da Revolução Francesa até os dias de hoje, dos exemplos que ficaram anacronicamente registrados, pode-se destacar a Declaração dos Direitos do Cidadão, com o estabelecimento de que a propriedade privada é "inviolável" e "sagrada", e o despertar da consciência da humanidade, de que os recursos naturais da Terra não são inesgotáveis. Ainda que seja menos pessimista do que Baudrillard, acredito que estejamos no lodo da repetição de fórmulas ultrapassadas. Um estado de crise sem precedentes na política, cultura, valores morais, estética, noções de espaço e tempo, relações entre o público e o privado, e de paixões eternamente revisadas; sem diminuir o peso da incoerência do Modo de Produção Capitalista numa reaplicação das contradições superadas. O Liberalismo Clássico, o Fordismo, a Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929, o Keynesianismo, a Crise Mundial do Petróleo, o Toyotismo, o Consenso de Washingnton, e, finalmente, a Barbárie (o atual estado das coisas). "O que fazer após a orgia?" Outubro de 1917 se mistura ao meu inconsciente de uma forma transitória porque a Revolução Russa foi e continua sendo refletida, para mim, não como a "Revolução Perdida", ou algo superado, mas o caminho preliminar, doloroso, em busca de uma liberdade incondicional em todas as esferas; em outros continentes. Imprevisto dentro da razão dominadora. O totalitarismo soviético não feriu o materialismo histórico; o seu vigor continuará, sempre, dentro de nós. Porque somos nós a História. Manifestamos esta perspectiva da ação concreta sobre necessidade fundamental em mudar a realidade: Dialeticamente! E o intelectual nasce do resultado contraditório e antiidealista de uma proposição racional e militante dentro do fenômeno histórico. Creio que as Idades Moderna e Contemporânea "oficializaram" tal postura critica e ativa do debate público sobre um mundo cada vez mais complexo. Logo, Antropocentrismo, Humanismo, a "separação" entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), além do Iluminismo, se aproximam, neste conjunto, a uma das metades na contextualização orbicular que observarei a seguir: a do Intelectual Tradicional. E, ao mesmo tempo, contrapondo-se a esta primeira idéia, verei uma outra categoria que rompe filosoficamente ao idealismo hegemônico e ao caráter "autônomo" desta linhagem: a do Intelectual Orgânico.
A proposição teórica que aponta para essas duas categorias, se encontra, também, nos livros "La Trahison des clercs" (A Traição dos Clérigos) de Julien Benda; e "Cadernos do Cárcere, volume 2" de Antonio Gramsci. Tal receituário nos permitirá avaliar as duas formas de interpretação que, mesmo antagônicas, se relacionam contraditoriamente.

Intelectuais Tradicionais
Uma das interpretações sobre a genealogia do termo "intelectual" exerce como ponto de partida 13 de janeiro de 1898, quando o escritor francês Émile Zola redigiu o emblemático manifesto "J’accuse", publicado no jornal republicano "L’aurore"; pedindo a revisão da sentença que acusara o Capitão Alfred Dreyfuss – oficial de origem judaica – de espionagem e traição. No dia seguinte, o mesmo jornal, publicara um abaixo assinado apoiando o artigo de Zola. Personagens como Anatole France e Marcel Proust contribuíram neste movimento de opinião pública. A questão central deste fato nos remete, aqui, a algo inédito: Émile Zola exercendo um outro papel histórico; saindo do lugar que lhe cabia na divisão social do trabalho e intervindo num assunto de interesse coletivo. O romancista (critério sociológico) transformou-se no intelectual (critério político) quando entrou no espaço público para defender Dreyfuss. Sérgio Paulo Rouanet nos diz que:

"A importância deste episódio define Zola como precursor, segundo alguns teóricos, do repertório universalista do iluminismo e da tradição republicana francesa; daqueles que nos anos 1930 protestaram contra o fascismo, no pós-guerra se opuseram à bomba atômica e ao colonialismo, nos anos 1960 e 70 condenaram a guerra do Vietnã e instalaram o tribunal Russel, e nos primeiros anos do nosso século se opuseram a agressão algo-americana no Iraque".

Tal afirmação de Rouanet, que ilustra o nosso raciocínio, representa uma defesa formal do repertório tradicional-universalista; compatível, segundo ele, "ao ideal da construção de uma civilização humana"; opondo-se a um tipo de relativismo canceroso e unilateral; além de arcaico. Fanatismos religiosos, nacionalismos extremados, etc... . O intelectual tradicional, segundo o diplomata, ao contrário, exerceria a uma atividade central e independente; fora das relações de poder. Defensor desta mesma opinião, a falta compromisso com a verdade, segundo Julien Benda, "estimulada pelas paixões políticas e ideológicas", trairia o vínculo racionalista proposto neste sentimento de universalidade. O filósofo cita, inclusive, Maurice Barres e Charles Maurras; artífices da Action française, do anti-semitismo e da direita monarquista francesa; cobrando uma superioridade moral até então esquecida por eles. Todavia, de que maneira este tipo de racionalismo pautado no repertório universalista do iluminismo e na tradição republicana francesa não seria, também, uma forma de particularismo? O intelectual significaria uma entidade acima do bem e do mal? A luta de classes se tornaria uma questão puramente metafísica? Com que neutralidade as contradições do fenômeno histórico contemporâneo seriam observadas? Tudo seria levado a potência abstrata em nome de uma vocação moral não laica? Penso que não deva haver consenso ideológico sobre Razão, Justiça, Liberdade e Felicidade – a universalidade sugerida pelo Catolicismo Anglo-saxão, pelo "Neo-pentecostalismo", pelo Islamismo e, também, pela Filosofia Metafísica que, embora muito sedutora, acaba se esgotando nela mesma. Porque a Filosofia Metafísica não pode, ao meu ver, inspirar uma ordem absoluta dos fenômenos utilizando "uma razão abstrata" sem reconhecer que esta mesma razão seja dialética; ignorando, assim, a materialidade do objeto. Hegel bem que tentou, mas se esqueceu das relações de produção e dos processos produtivos referidos por Marx. A Metafísica é, portanto, a antítese da Dialética. Logo, os intelectuais universalistas são filhos de um humanismo metafísico individualista cujo reconhecimento se opõe ao relativismo dos fenômenos históricos, culturais, políticos, etc... . Ou seja, universalizar para particularizar. O verbo é ideológico e, por isso, segundo Baktin:

"o pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento".

Diante disso, a matriz universalista é o câncer hiper-realista de um purismo filosófico que despreza as relações sociais em que a própria Filosofia está inserida. Pensar um país sem gravata, eis o nosso objetivo; porque a chantagem universalista é justamente uma cúria sacerdotal que debocha daqueles que pretendem mudar a sua comunidade ou região através de um pensamento orgânico, que atenda as expectativas de determinado grupo social. Percebo que exista um etnocentrismo muito forte nessa estória; pautado, inclusive, no racionalismo cartesiano e na filosofia alemã. Rouanet é um homem inteligentíssimo, mas não me atrai com a sua "democracia cosmopolita". Tal paradigma se apresenta equivocado aos meus olhos. Somos bárbaros, não somos civilizados. O mundo moderno ainda não amadureceu psicologicamente na mesma velocidade do tecnológico. "Ave Marcuse".Continuamos gravitando em torno da ficção capitalista, neoliberal. Logo, pensar numa superioridade ou virtude intelectual tendo como princípio a linhagem universalista é conversa fiada. Não existe purismo ou superioridade mística totalizante. O amor é absoluto? A verdade é absoluta? A liberdade é absoluta? Decisivamente não! Se o fossem, já estaríamos num estágio desconhecido; para além do Comunismo, de transcendência. Portanto, e para concluir, a tese universalista está, ao meu ver, superada pela história.