quarta-feira, setembro 19, 2012

Dois e Dois são Cinco!



Gostaria de escrever imagens pelas ruas "antonionescas" próximas do trabalho como no vazio sugerido da pintura de Hopper ou como nos filmes de David Lynch. Novos afluentes na batida frenética dos helicópteros e do fonema; contraditória prisão do tempo pelo instante do movimento. Jarmusch na "desarmonia" musical de Lurie e Waits. Signo flexível, longe da sintaxe cartesiana. Macunaíma perdido na Paulicéia. 





quinta-feira, setembro 02, 2010

O Choque, a Ordem e o Consenso: Uma introdução ao debate sobre o público e o privado no discurso do jornal O Globo.

Numa época essencialmente estática, a conservação de rituais imutáveis pode ser um reforço genuíno da estabilidade e do consenso. Porém, num período de mudança, conflito ou crise, o ritual pode permanecer deliberadamente inalterado, de maneira a dar a impressão de continuidade, comunidade e segurança; embora existam indícios contextuais esmagadores em contrário. Na Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, com as ações do Choque de Ordem (política municipal contra a desordem urbana), observa-se, desde o início do mandato do Prefeito Eduardo Paes, em janeiro deste ano (2009), uma “nova” modalidade de intervenção no espaço concreto e simbólico, onde o vigor autoritário do Estado se consagra como aparelho de poder e, também, organizador de determinado consenso sobre a finalidade supostamente racional, burocrática de suas medidas (GRAMSCI, 2000); referendado por setores da sociedade civil vinculados à iniciativa privada e pela imprensa, ações estratégicas de higienização e saneamento antropológico no espaço urbano têm sido alcançadas num tipo de percepção que substitui o anterior sistema tecnológico de um espaço coerente e totalizante (FOUCAULT) da antiga gestão, por uma “retórica de pedestre”, de trajetórias que têm uma “estrutura mítica”; compreendida como “uma história construída a partir de elementos tomados de expressões comuns; uma história alusiva e fragmentária cujas lacunas se confundem com as práticas sociais que ela simboliza (CERTAU, 1984). Como podemos observar nesta passagem:


“RIO – O secretário municipal de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, disse, no início da tarde desta terça-feira, que, passada a primeira fase do choque de ordem (que será permanente), é chegada a hora de um choque de civilidade. Neste sentido, ele lançou a primeira edição de um pequeno Manual de Ordem Pública, - como O GLOBO antecipou em março - com oito dicas para que o cidadão colabore com a ordem na cidade. A idéia é que os usuários do manual - que tem uma tiragem de 400 mil exemplares, e será distribuído em associações de bairros, subprefeituras e sedes de administração regional - destaquem suas páginas para entregar a quem for flagrado cometendo alguma irregularidade, como estacionar nas calçadas ou andar com cachorro sem coleira e não recolher suas fezes das ruas.” 1


Essa moldura introdutória, além de complexa, nos permite refletir sobre um tipo de construção discursiva que interage no movimento de uma história cada vez sugerida factualmente; presentificada e, sobretudo, anti-dialética. Se considerarmos que, na Modernidade, a prática jornalística em sua vocação “iluminista” foi encarada como objetiva, moral, universal, na Pós-Modernidade (BAUMAN, 1998), vemos que as “formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento foram absorvidas pelo mito, pela religião e pela liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio de nossa própria natureza humana” (HARVEY, 1993). É neste sentido que a imprensa reivindica sua vocação industrial, pedagógica e histórica nas relações de produção; sua vitalidade estratégica como aparelho de hegemonia e, ao mesmo tempo, o seu duplo papel de funcionamento na sociedade civil: de um lado as iniciativas industriais monopolistas (criação, produção, distribuição, etc.) e de outro as cultural-ideológicas: tentativa de estabelecer continuidade ritual ou simbólica com um passado histórico apropriado. Nosso recorte, entretanto, se concentra na segunda função destacada por entendermos que o discurso jornalístico se constrói, reproduz e modifica as representações do mundo, as identidades e relações sociais em jogo em cada situação de comunicação vivida (PINTO, 2002); em particular, nesse caso, como adaptadora do progresso e da moralidade da população carioca às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho produtivo e das relações de produção.

Embora se perceba, dentre outras coisas que o significante “Choque de Ordem”, represente, na construção sintática do texto jornalístico, um artifício de necessidade absolutamente formadora e de coeficiente ilusório, cabe-nos localizar, interpretar e explicar cientificamente sobre a vitalidade das formas discursivas, das motivações político ideológicas e de como, nesse espaço simbólico, se constroem, reproduzem e modificam as identidades e relações sociais. Lembrando, com Bourdieu (1989), que o poder simbólico é aquele que consegue transformar relações de dominação/submissão, em relações afetivas e que, quanto maior o sentimento mobilizado, maior o ocultamento das diferenças sem que se evidencie a violência perpetrada; parto do princípio de que, no campo das ciências sociais, em particular, nenhuma escolha “de palavras” é ingênua.

Acredito na importância de refletir sobre os enunciados contidos nos discursos das matérias do jornal O Globo na cobertura do Choque de Ordem no ano de 2009 e 2010; problematizar a função hegemônica que esse tipo de estrutura discursiva exerce na enunciação, reprodução e transformação das representações do público e do privado no imaginário coletivo; as relações de força simbólicas que envolvem esse processo de comunicação, bem como as formas de luta pela imposição da visão legítima do mundo social. Esse processo se concentraria nos seguintes tópicos:



1) Perspectiva histórica e social. Modernidade e Pós-modernidade. Rever criticamente o contexto político do jornalismo impresso sob uma perspectiva histórico-discursiva; de como ele evoluiu nos últimos anos em relação às questões de caráter social e coletivo; sobre as contradições entre essas mudanças, finalidades discursivas e a relação do espaço público/privado, bem como as transformações técnicas e sociais da comunicação. Indústria e Cultura. Balanço de teses e dissertações sobre o assunto.

2) Motivações Políticas do discurso. Enunciação e performance. Os intelectuais e o Estado (problema teórico). O Estado e a Privatização. A Imprensa e o Estado. O Globo no debate político. Sociedade Civil e Sociedade Política. Infra-estrutura e Superestrutura. O saber e o poder. Variações semânticas e léxicas do termo Estado nas referências e conflitos de interesse público e privado. As representações do poder na imprensa escrita; da noção de complementaridade e diferença nas relações e práticas sociais. O Positivismo e o Marxismo. A causalidade e a dialética. O fim e o meio. A invenção das tradições.

3) Filosofia do Discurso e Hegemonia. A razão e o imaginário. A linguagem e o fetiche. Diferenças entre comunicar e informar; as formas da comunicação/enunciação no contexto da vida da Cidade do Rio de Janeiro. Da força dos signos aos efeitos de superfície. A idéia de verdade e de progresso que envolve o Choque de Ordem. O imperativo ético do consenso e a luta de classes; os aparelhos de hegemonia e a questão ideológica.

4) Revisão crítica do Jornalismo. Por uma nova agenda política dos acontecimentos. Materialismo cultural e abertura de consciência. Da pirâmide invertida a teoria crítica. Os intelectuais orgânicos no processo da mudança.



A relevância científica e histórica deste estudo dentro das pesquisas existentes se concentra na necessidade em mostrar como são representadas as ações da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro no O Globo – um dos jornais de maior prestígio no país; escolhido pela influência exercida nas classes A e B – que tem como eixo um tipo particular de construção e mediação discursiva que não termina nos limites do social, mas que contamina o terreno geral do político (MARTIN- BARBERO, 2006). Nosso problema central será o de pensar criticamente o Choque de Ordem no redimensionamento abstrato entre dois espaços “supostamente” delimitados: o espaço público e o espaço privado; analisando e descrevendo os efeitos semânticos do poder e da verdade nesse jogo enunciativo; sobre o que significa ser público numa sociedade onde se renova um tipo de mediação e intervenção das instituições de Estado e da imprensa no espaço público; que consagra interesses individuais e privados de classe em detrimento de interesses coletivos. Lembrando o trabalho de Foucault em analisar a produção do discurso e as estratégias de subjetivação do poder, esse nosso interesse lança o desafio de refletir, inicialmente, um tipo de representação social e política na linguagem da comunicação jornalística tradicional; onde, se percebe, no lugar da substância interpretativa concreta, os efeitos de superfície, a estetização forçada. Diante disso, nossa primeira hipótese de trabalho será a evolução do valor político do signo; entendido, aqui, como fetiche, simulacro. A função específica desse valor político para determinada estabilidade social e construção hegemônica formará, nesse conjunto, a segunda hipótese de trabalho.

O termo hegemonia, acima mencionado, ocupa um lugar muito especial no desenvolvimento argumentativo de nosso texto porque faz-nos localizar e discutir, na situação histórica atual, a relação entre complexos industriais de informação e o Estado/Governo (sociedade civil e política); na construção de uma subjetividade que escamoteia as contradições dos fenômenos sociais em desenvolvimento na busca de certo controle material e simbólico dos espaços. Portanto, além da identificação desses grupos, nossa terceira hipótese avançará na idéia de um ordenamento parcial do sentido como espelho de uma realidade mercantil que “governa” o mundo empírico; na perspectiva, inclusive, de um discurso já integrado ao plano sistêmico da estrutura de poder.

Concluo esta etapa retomando a pergunta sugerida por Gramsci que encerra a dissertação de mestrado de Cátia Guimarães2 e nos estimula no sentido de uma discussão teórica mais aprofundada sobre a relação entre Estado e Sociedade e suas mediações discursivas: “Se a escola é de Estado, por que não será de Estado também o jornalismo, que é a escola dos adultos?” (2004, p.229).




Notas

1 Fragmento extraído da matéria “Depois do choque de ordem, Bethlem anuncia choque de civilidade”; publicado no jornal O Globo em 14/04/2009.

2 Ver mais sobre essa dissertação em http://www.pos.eco.ufrj.br/


Bibliografia


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quarta-feira, agosto 20, 2008

A poesia caótica do Movimento

O meu diagnóstico para a educação e identidade verificadas no quadro político atual, se inscreve na urgência em reproduzir o movimento da cidade do Rio de Janeiro sob uma NOVA perspectiva; atualizando o debate sobre como é encarada a miséria social pelo senso comum; a omissão e indiferença do poder público, o gesto paternalista do Estado, o assistencialismo demagógico das Ongs e da Igreja Católica; articulando essas observações como sintoma de um processo histórico colonial escravocrata, que se refugia, hoje, num julgamento moral anterior, estéril e ineficaz. A celebração feérica dos 200 anos da chegada da família real aqui no Brasil, ao invés de promover uma reflexão crítica sobre a dívida histórica da opressão portuguesa, se concentra no recalque inconsciente do discurso oficial sobre uma herança européia, branca, aristocrata e “civilizada”; pensamento ainda hegemônico nas práticas e representações sociais do cotidiano e nas relações de poder. Nesse sentido, devemos respeitar uma formação social do indivíduo ancorada radicalmente no “positivismo” de Auguste Comte (lembremos da bandeira nacional!) ou sugerirmos uma nova idéia, um novo tipo de materialismo cultural, libertário e humanista? A fisionomia urbana não pode ser admitida como metáfora de nossa cidade sem observamos que a mesma é o reflexo de uma sucessão de anacronismos que precisam ser reeditados; dívida histórica de um legado perverso cuja omissão se apresenta de forma contraditória, incoerente e repetitiva. A lógica da inclusão social é a marca ideológica da mentalidade (neo)liberal-republicana (de John Locke até Milton Friedman), admtindo a tese de que as classes subalternas ou aqueles que estão “fora” do movimento de acumulação capitalista precisam ser “incorporados” ao processo de produção, sem observar que os mesmos já foram afetados por este sistema econômico que controla o Brasil. Logo, a especulação financeira, a prosperidade econômica das grandes corporações industrias e as leis que regem o mercado tornaram-se as grandes vedetes no discurso da imprensa burguesa, naquilo que se traduz como “síntese progressista”; tal incoerência reflete não apenas a parcialidade, a sujeira e o autoritarismo de uma liberdade idealizada, mas a uma crise nos códigos linguísticos daquilo que entendemos como informação – no que se refere aos fenômenos da cultura – e, ao mesmo tempo, a crise na ideologia com a qual esses códigos se identificam. É preciso entender o professor e o jornalista como intelectuais orgânicos. Qualquer tipo de pedagogia educacional que não absorver Antônio Gramsci dançará na estória; esquecendo-se de se apresentar, não só, como desejo de ir fundo na psicologia social, antropológica do Rio de Janeiro a partir da “topografia” da cidade; mas de criar algo experimental, fora das teses por encomenda e do romantismo acadêmico.
A apresentação da crise, a perspectiva histórica, e o repúdio à simulação de um cotidiano metonimizado pelo jornalismo tradicional, devem se tornar as bandeiras nesse caminho por uma nova Educação Libertária; sem o moralismo e a conveniência da estabilidade social que prejudiquem o compromisso com a arte. A história é o movimento que responde ao estatuto de uma oficialidade que se construiu a partir dela e através dela se auto-legitima; porque ela própria se constitui como discurso de poder. O professor-jornalista, aqui, é aquele que não pensa mas que grita através de textos, imagens e sons. Deixemos o racionalismo Cartesiano! A razão nos aprisiona! Ao invés de Descartes precisamos de Breton. Ler não apenas Sheakespeare e Pirandello, mas principalmente Brecht e Meyerhold. Precisamos sair do palco italiano! Então o que sugiro é isso: vários gritos de repúdio à teatralização de uma “verdade instituída”; porque o poder se ocupa da verossimilhança banal do cotiano psico-sociológico e a transforma em falsas expectativas. O signo é a subversão da idéia porque essa mesma idéia é uma representação que emergiu do próprio signo. As aquarelas, os escritos e as telas pintadas por Debret, além de toda representação pictórica que emoldura a racionalidade da nossa historiografia, formam um patrimônio histórico eurocêntrico e etnográfico de um romantismo tropical que alimenta todo o nosso repertório simbólico. Ao invés de negros pobres miseráveis e escravos, o exotismo de uma etnia bem comportada; os atabaques, as danças e os cânticos deram lugar ao gosto religioso pelo misticismo eclesiástico. Sob um olhar mais cuidadoso, vemos que a marca fenotípica africana se esconde pela cumplicidade servil nos traços do homem branco europeu. O Teatro de Debret é uma alegoria falaciosa da cidade do Rio de Janeiro e do que nela se pode traduzir; não apenas nos afrescos da ordem pitoresca imperial mas na miséria social que se sobrevive até os dias de sempre. Discutir a representação histórica do Rio de Janeiro será o mesmo que admitir a possibilidade do seu desaparecimento ou de sua “morte”. Eis o que a Educação Libertária se propõe: inventar uma outra cidade; mas para fazê-lo, o tumor precisa ser extraído e mostrado. Sem a exposição do trauma não há cura. Somos historicamente a ficção dada pelo o outro; o mesmo que nos oprime. Logo, construiremos um outro discurso que responda intuitivamente ao sintoma; o trauma é o sintoma. O confronto permanente entre a verdade-mentira instituída e a mentira-verdade reprimida. Não é apenas uma idéia, é um manifesto onde se contesta uma razão dominadora. Imagens e sons que, desarticulados, pintarão um outro quadro-síntese da complexidade de nosso tempo. A população conduzirá o pincel na expressividade caótica de sua angústia. Não será processo trágico mas sobre aquilo que inspira a tragédia humana, uma postura mais realista e experimental das coisas. Movimento heterogêneo de imagens captadas e estranhamento reflexivo; sincretismo filosófico cuja finalidade tem como ponto de partida a criação livre, onírica e dialética. A estrutura é a anti-estrutura porque o sentido tradicional da informação se prende a esquemas conceituais que limitam a carga subjetiva do que se pretende mostrar. Não há início, não há o mito fundador; o que existe são fluxos, feixes, sombras. Portanto, a genealogia é a subversão da própria idéia genealógica. A imagem livre, em composição permanente com outras imagens na promiscuidade do movimento. O conflito não se traduz como tensão dramática mas na irradiação metafórica do próprio signo em conflito; que aponta para lugar nenhum e todos os lugares ao mesmo tempo; porque ele próprio é o devir que reagirá contra a experiência traumática das formas. Espectro que surge na intenção da mudança, do choque, da obra aberta, intelectual e engajada que provoque uma discussão ativa, lúcida e histórica sobre os fenômenos que envolvem a complexidade do nosso tempo. Essa coisa de problematizar a identidade cultural brasileira sem trazer Oswald de Andrade ou Graciliano Ramos fica, também, muito esquisito. Penso em várias coisas. Deixarei, entretanto, para uma outra ocasião.

quarta-feira, julho 23, 2008

Infiltrações!

Vale dizer, em primeiro lugar, que é um texto que analisa o filme “The Departed” (Os Infiltrados/2006)1 de Martin Scorsese (Oscar 2007 de melhor diretor); espécie de crônica policial/suspense que toca no individualismo, no preconceito racial, social, de gênero, na imigração e na crise de identidade nos tempos da globalização; sinalizando, inclusive, uma disputa (ou integração?) tecnológica e, também cultural entre Eua e China; mantendo, ironicamente, um tipo de conservadorismo histórico, nacionalista e demagógico muito particular à indústria cultural norte-americana; mesmo depois da guerra fria. O elenco espetacular (Leonardo Di Caprio, Matt Damon, Jack Nicholson) não absolve o tipo de psicologia da sociedade que eles representam; universo multicultural onde o sofrimento, a frustração e impotência dos personagens derivam da falsidade de um sistema que necessita funcionar, “nos dois lados”, com alta produtividade e eficiência. Scorsese consegue tratar o lícito e o ilícito como um problema ético do tipo “spinosita” onde a liberdade e o livre arbítrio se chocam no esvaziamento dos conceitos de perfeição e imperfeição, valor e desvalor, bem e mal no seu tradicional significado. A dialética da infiltração é a não existência de uma fronteira concreta ou simbólica que determine as coisas. Tudo é falso! Nesse sentido, a preocupação objetiva será discutir a narrativa do filme, resumidamente. Começamos na relação entre montagem e roteiro; gênero baseado, aqui, nas emoções fortes, nos sentimentos e no naturalismo. Logo em seguida, o uso dos flashbacks nos permitirá entender como este recurso justifica, endossa aquilo que está sendo contado; e que, ao mesmo tempo, a dimensão espaço-temporal simula uma quebra cronológica sem, no entanto, sair dela. Num terceiro momento, a composição de imagens, articulação expressiva e simbólica, tomam lugar. E por último, entender a relação dos blocos dramáticos; condensação de imagens e sons em movimento que, juntos, constroem o resultado final da obra cinematográfica.


1)Relação Montagem/Roteiro:

Vemos o teatro e da literatura como heranças de uma tradição cinematográfica que submetem o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto a possibilidade (do espectador) de sentir o aspecto ideológico do que foi exposto. Um filme de ação e violência pede isso; ao contrário estaria transgredindo toda liturgia comercial que inspira o cinema norte-americano desde os tempos de Griffith; e o roteirista William J. Monaham e a montadora preferida de Scorsese, Thelma Schoonmaker, conseguiram reelaborar juntos, nessa idéia, uma melodia bem orquestrada que resultou no Oscar de melhor montagem e de melhor roteiro adaptado para uma espécie de thriller policial que afirma essa conjugação simbiótica entre teoria e prática; mesmo sabendo das modificações e problemas que sempre ocorrem no momento da filmagem. A antinaturalidade do filme se traduz na montagem dinâmica, pela consecução e pela ênfase através daquilo que não se mostra diretamente: o sentido informal das coisas, o deslocamento, a perda de referencialidade; daí o tráfico do microchip como propósito de identificação e integração dos circuitos. A profundidade psicológica é um outro dado que nos ajuda a pensar um tipo temporalidade em desconstrução.


2) O uso de Flashbacks:

A temporalidade em permanente deslocamento acompanha a uma tendência histórica, típica da modernidade, numa quebra do cronológico em direção a instantaneidade e onipresença dos acontecimentos. Uma questão curiosa seria a genealogia dos detetives Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) e Colin Sulivan (Matt Damon); que acontece em poucos minutos, ajudando a construir e apresentar as suas respectivas “qualidades e defeitos” para o espectador. Embora exista uma série de paralelismos que simulem uma justificativa formal para as ações na dinâmica do antes e depois, o que temos, no filme, é uma síntese do presente em constante transfiguração. Não que todas ações aconteçam no mesmo tempo; mas na perspectiva temporal que as condensa, estica a duração e prega uma natureza variável do tempo; que o torna tão falso quanto os personagens. Nessa medida, é o nosso psiquismo que constrói essas relações; pensamento segundo regras de análise e síntese que, sem o instrumento cinematográfico, o homem teria sido incapaz de realizar.


3) Composição de imagens:

O corte invisível funciona perfeitamente e não se perde na dinâmica que ele mesmo sugere: a de compor as diferenças. Interessante percebermos no início do filme uma espécie de epígrafe que situa o espectador sobre um tipo de conflito social em Boston. Relação onde as imagens e o estilo testemunhal sugerem uma intervenção semelhante ao documentário; personagens em sua maioria negros e anônimos falam do preconceito que os divide, imagens da polícia, ônibus apedrejado forçam uma compreensão “realista”; espécie de crítica que toca na sensibilidade do espectador sobre o atual estado das coisas. Logo em seguida um texto em off de Frank Costello (Jack Nicholson) serve de ligação para que ele se apresente já na “ficcionalidade” como um dos protagonistas. A temperatura de cor se modifica sublinhando o espaço do documentário e da ficção, que se fundem. O simbólico funciona num ritmo em que as imagens também agridem umas às outras ratificando um sintoma pesado, canceroso. De que maneira nós poderíamos identificar a diegese e a extra-diegese como propostas “equivalentes” numa estrutura clássica? Se a diegese do filme nos coloca numa trama policial, a extra-diegese nos diz que as relações humanas promovem um estado de coisas onde o crime é o desequilíbrio, a vertigem, o princípio de complexidade e de estranheza; tudo se desliga e liga numa indiferença total. Não existe afetividade nem tampouco transparência, somente conexões frias e anômalas. As imagens não se compõe na presença afetiva do discurso mas num tipo de comportamento artificial em forma de jogo; onde as pessoas não se trocam, se conectam, apenas.


4) Relação entre os blocos dramáticos dentro do filme.

O paralelismo e a elipse foram os recursos utilizados em quase todo o filme. Situações que podem ilustrar essa idéia, acontecem no momento em que o Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) descobre que Colin Sulivan (Matt Damon) é o policial corrupto infiltrado. Os dois estão conversando no departamento de polícia quando Colin Sulivan pede licença e vai para uma outra sala para verificar no computador, sigilosamente, o registro sobre o histórico de Costigan. No mesmo tempo em que ocorre esta ação, Billy Costigan, sozinho, reconhece, em cima da mesa de Sulivan, o envelope que ele próprio tinha escrito e entregado para a quadrilha de Frank Costello com as suas próprias informações (nome completo, seguro social, conta bancária...). Intrigado, ele sai da sala, nota que Sulivan está, ainda no outro espaço verificando a sua ficha e vai embora. Sulivan então termina e volta para entregar o registro, impresso, para Costigan e percebe que ele fugiu por ter descoberto o segredo. Na mesma hora, Sulivan entra, novamente, no sistema e apaga o histórico de Costigan. Logo em seguida uma elipse ocorre; e vemos, já em outro prédio, Costigan entregando à Madeleine (Vera Farmiga; psicanalista e mulher de Sulivan com quem ele teve um flerte) um outro envelope que deve ser guardado e só aberto quando ele pedir ou em caso de emergência. Essas duas cenas embora descritivas quebram o raccord alguma vezes com a finalidade, acredito, de aumentar a intensidade dramática e a expectativa sobre o que irá acontecer depois. Tudo é falso! Até os cortes. A dramaturgia não se traduz na incerteza enquanto discurso “racional” mas no efeito emotivo em que essa incerteza opera; e, de alguma maneira, os blocos conseguem se comunicar agressivamente obedecendo uma estética clássico-narrativa menos previsível. Acho que Scorsese de alguma maneira quebra o teorema da equação exata e reativa uma contigüidade que fotografa o inconsciente coletivo de uma modernidade onde ninguém pode ser absolvido de nada. Muito menos a igreja católica. Ele afirma isso no signo, na técnica, em cada fotograma; chegamos, enfim, a um tempo onde as coisas passam do domínio da lei (a ordem, a verdade, o capital, o valor, a economia, o significado) para o domínio da regra (o jogo, o rito, o cerimonial, o ciclo, a repetição). “Os Infiltrados” é a própria encenação do falso. Os blocos dramáticos nada mais são do que circuitos integrados em planos que conduzem o destino dos acontecimentos sem destino. Não existe o crime perfeito, nem final feliz, nem os rostos; restam, apenas, as máscaras.


Notas


1. Filme baseado no roteiro de Siu Fai Mak e Felix Chong.


Bibliografia


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sexta-feira, julho 11, 2008

A potência do Falso e o Trompe-l'oeil

Ao tomarmos, resumidamente, como objeto de análise F for Fake, vemos que a tão cultuada abstração utópica pela verdade se desmancha no seu próprio exorcismo. Não se trata, apenas, de confundir o real; trata-se de produzir um simulacro em plena consciência do jogo e do artifício, instaurando a dúvida sobre a realidade da terceira dimensão, imitando e ultrapassando o efeito do real. O ilusionista e a criança deixam claro essa predisposição à dúvida radical sobre o princípio de inteligibilidade. Tudo é falso! Logo, posso simular todas as coisas. O verossímel consiste em uma dialética do verossímel e do inverossímel. O inverossímel consiste na negação dessa dialética, na desunião radical do verossímel e do inverossímel e, por via de consequência, na autonomia do princípio do inverossímel. Enquanto o verossímel supõe a cumplicidade dialética do inverossímel, o inverossímel fundamenta-se em si mesmo, em plena incompatibilidade. Logo, Orson Welles é o mestre do jogo e é, ele próprio, enquanto imagem, o princípio do inverossímel; reinado onde triunfa absoluto. Seu filme se impõe como “sedução”; que é a figura bem mais radical de desligamento, de distração, de ilusão e de desvio; de alteração da essência e do significado, de alteração da identidade e dos sujeitos (Ele é Americano ou Mexicano? Lembre-mo-nos de “A Marca da Maldade1”). Logo, a “sedução” proposta em F for Fake é o excesso do outro e da alteridade, é a vertigem do mais diferente que o diferente (e partir daí toda a discussão sobre a autenticidade da obra de arte). Diante disso, a expressividade não está na imputação das coisas a uma instância significativa mas na relação de estranhamento de cada uma delas no tempo e no movimento.

Welles nos conduz na própria ironia de aprender as coisas, mas ironia suspensa, abstrata, tornada metafísica. Os objetos do trompe-l'oeil guardam a mesma fantástica plenitude da descoberta de sua imagem pela criança, algo de uma alucinação imediata anterior à ordem perspectiva. Importante situarmos esse devir-criança; não tanto esquematicamente como pensou Espinoza, mas de uma relação que deveríamos imprimir sobre as coisas e elas sobre nós. Tal como Picasso pintou, sem juízo, pelo prazer; e o filme evoca uma espécie de cubismo analítico; pela decomposição e pela falta de compromisso com a forma. Vemos que, ao contrário de todo o espaço da Renascença, que se organizara segundo uma linha de fuga em profundidade, no trompe-l'oeil de F for Fake o efeito de perspectiva é de alguma forma projetado adiante. Ao invés de os objetos fugirem panoramicamente diante do olho que os varre, aqui são eles que “enganam” o olho por uma espécie de relevo interior; não naquilo em que fariam acreditar num mundo real que não o é, mas naquilo em que frustram a posição privilegiada de um olhar. Essa frustração aceita pelo olhar é motivada pela crença; “orientação psicológica e motora previsível” de que, também, Deleuze toma parte na oposição do sensório motor tradicional e as situações óticas sonoras. O olhar é traído naquilo que pensa que vê; tal como Narciso o foi quando deparou-se com seu duplo refletido no espelho d'agua; alteridade radical, morte da representação pelo outro eu-imagem. O próprio Orson Welles se coloca como figura espectral e debocha de si mesmo representação; tal como Renée Magritte (Ceci n'est pa un pipe!) com a inexistência das propriedades do signo representado. Tudo é falso! Logo, aquilo que o pintor belga surrealista sugere dialoga com o filme porque esvazia a potência sedutora da forma-sentido e reativa a potência sedutora da expressão-composição. Tudo podemos ver, menos um cachimbo. Tudo podemos crer, menos nas verdades. Logo, em nada devemos acreditar. Devemos morrer como realidade e nos produzir como engano pela imagem; porque somente através dessa negociação sensual e incestuosa com ela, com nosso duplo, com nossa morte, que ganhamos nosso poder de sedução: o de viver a antinaturalidade das coisas.
Bibliografia de apoio:

1.Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.

2.Bosi, Alfredo. "Fenomenologia do Olhar" in Novaes, Adauto. O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

3.Debray, Regis. Vida e morte da imagem. São Paulo: Vozes, 1993.

4.Machado, Arlindo. A ilusão especular. Introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Espinoza e o movimento

A subversão da forma pelo movimento, tema observado neste artigo, se insere como preocupação elementar nas discussões sugeridas sob o domínio da Filosofia Empirista; cujo edifício teórico nos permite refletir algumas idéias relacionadas a expressão; tendo como base o texto “Lembranças a um espinosista”1.; discutido, neste trabalho, de forma livre, anti-acadêmica, porque avesso a qualquer tipo de sintoma imobilizante no processo de articulação dos fenômenos da cultura; em especial o Cinema; admitindo a hipótese de que o pacto que rege atualmente as operações do pensamento é o da crise nos modelos de representação e anti representação. O termo crise é posto, aqui, como módulo divisório entre duas categorias elementares que trabalharemos em conjunto: a primeira diz respeito a tudo aquilo que pertence ao domínio da linguagem e da razão. Nesse lado temos a experiência traumática das formas e a impossibilidade de superarmos a fragilidade esquemática de suas representações que, apoiadas na redundância do significado, as paralizam através de códigos e meta-códigos. Temos nessa metade a operação de Lévi-Strauss (Antropologia), Vladimir Propp (Literatura) e Nikolai Trubetzkoy (Morfologia); prática onde se permite determinar uma estrutura homóloga no interior de uma dada ordem de fenômenos, além da condenação peremptória das formas. Diferente disso, a segunda categoria se revela na expressão; sendo, portanto, vetorial, performática; fora dos pontos e das coordenadas; fazendo fugir em todas as direções; não existindo contorno algum; apenas a simulação radical de todas as coisas em planos de composição que, pelo vigor, nos traga uma espécie de recompensa sensorial e criativa; porque a idéia de gozo não está no sentido mas na potência estilizada das imagens. Nesse contexto, o espelho não se permite refletir coisa alguma mas todas as coisas; anamorficamente. Logo, essa díade linguagem x expressão, resumidamente introduzida, serve de parâmetro àquilo que Espinoza observa como movimento x repouso.



1. Fazer do movimento um dado imediato da imagem é entender a sua relação com o repouso; ao mesmo tempo que admitir o Cinema como dado imediato da expressão é entender a sua inclinação desconfortante para a linguagem. Debate permanente sinalizado por Espinoza cujo princípio elementar se define em planos composição. Vejamos:


“É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimentos absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando nesse ou naquele agenciamento individuado, de acordo com os seus graus de velocidade e lentidão”.2


A qualidade transgressora do Cinema é a própria imagem em seu desejo pelo choque do pensamento (lembrei-me de Eisenstein!); que recolhe o essencial de outras artes, herda o necessário e converte em potência o que ainda só era possibilidade.



2. A natureza é a anti-natureza que se decompõe no choque de movimentos em direção ao pensamento; célula múltipla e divisível onde:


“...cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O Plano de consistência da natureza é uma imensa máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são agenciamentos ou indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas.”.3


Películas no esquema abstrato onde o choque tem um efeito sobre o espírito, ele o força a pensar e a pensar o todo. Esse todo é o próprio sentido do filme; representação indireta do tempo que decorre do movimento. Alain Resnais soube explorar esse tempo acronológico sob uma figuração essencialmente cubista, fragmentada no seu filme “O Ano Passado em Marienbad”.



3. A montagem é no pensamento o próprio “processo intelectual”, ou o que, ante o choque, pensa o choque. Já a imagem, visual ou sonora, tem harmônicos que acompanham a dominante sensível, e entram, por conta própria em relações supra-sensoriais:


“Plano fixo de vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. (...). Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim polvo ou Sépia (...)”.4


A Plicatura Espinosista nos mostra que o orgânico tem por correlato o patético. É desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plástica, uma matéria sinalética, carregada de traços e expressões, visuais, sonoras, sincronizadas ou não; que redigem no abstrato aquilo que se afirma opondo e sobrepujando as próprias partes. Uma tela de Salvador Dalí nos serve como exemplo; aludindo à idéia surrealista de sintaxe pura.



4. O Cinema é sempre narrativo, e cada vez mais narrativo (o que é trágico!), mas é dysnarrativo (neologismo de Robbe-Grillet) na medida em que a narrativa é afetada por repetições, permutações e transformações detalhadamente explicadas pela nova estrutura. Todavia, uma semiótica pura não pode seguir as vias dessa semiologia, pois não há narração (nem descrição) que sejam um “dado” das imagens. É preciso notar que:


“Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com o desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com um fundamento escondido na profundeza das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem, com as multiplicidades ou individualidades que ele recorta.”5


A diversidade das narrações, para Espinosa, não pode se explicar pelos avatares do significantes, pelos estados de uma estrutura da linguagem que se suportaria subjacente às imagens em geral. Ela remete apenas a formas sensíveis de imagens e a signos sensitivos correspondentes que não presupõe narração alguma. Os tipos sensíveis não se deixam substituir por processos de linguagem. Jackson Pollock através de seu expressionismo abstrato é ruptura anárquica, labiríntica, pela composição.



5. A potência do falso na expressão só existe sob o aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras. Diante disso:


“A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõe um indivíduo, que o decompõe ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.”6


O indivíduo fará parte desta cadeia, numa ponta como artista, na outra como potência do falso (F for Fake de Orson Welles). E a narração não terá outro conteúdo senão a exposição desses falsários, seus deslizes de um a outro, as metamorfoses de uns nos outros ou em si mesmo. O escritor tcheco Franz Kafka atinge esta dimensão onírica e crítica em seu conto “A Metamorfose” onde “numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”



6. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Logo:


“..., o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida.” 7


As categorias de vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. A atitude cotidiana é o que põe antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador do termo. A attitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como esse fora infinitamente mais longínquo do mundo exterior. Personagem de Virgínia Woolf, Orlando, dorme homem e acorda mulher; ambigüidade permanente que traduz a dimensão desta passagem. O tempo Cronos é rompido na sua previsibilidade, assim com o gênero na sua vocação para um único estado de espírito. Nessa medida, um outro tempo, o tempo Aion, acronológico, fere o sentido preliminar da expectativa e nos lança na potência espetacular da crise; que é a própria negação da forma que determina o corpo, os órgãos que possui e as funções que exerce.



7. Enfim, chegamos ao devir-criança de Espinosa; que é o da experiência cognitiva em curto-circuito, da memória volátil, altamente experimental e do não julgamento. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela:


“Não se trata de animismo, não mais o que mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. (...). O Espinosimo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo.”8


O artista quando movido por este afecto, torna-se hóspede inconstante e aguerrido do sonho; entretanto, arrumá-lo, esquematizá-lo, seria o mesmo que destruir uma construção viva e prendê-la ao inteligível. O Cinema bem comportado é a criança que ainda não alcançou a espontaneidade anárquica dos movimentos; que, atingidos, exploram a dimensão pictórica do falso e do agenciamento explosivo na criação.



Conclusão


Apenas uma sombra que não pode ser vista!




Notas



1.DELEUZE, Gilles. Lembranças a um espinosista, I. In: Devir-Intenso, devir-animal, devir imperceptível. In: Mil Platôs 4. São Paulo, Ed. 34, 2005.

2. idem, pág. 41.

3. idem, pág. 39.

4. idem, pág. 40.

5. idem, pág. 39.

6. idem, pág. 42.

7. idem, pág. 39.

8. idem, pág. 42.




Bibliografia



1. BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.


2. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix,. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.


4. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.


5. DESCARTES, René. Discurso sôbre o método. São Paulo : Hemus 1972.


6. KAFKA, Franz. A metamorfose. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993.


7. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

8. MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982.

9. PROPP, V. IA'. (Vladimir IAkovlevich). As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: M. Fontes, 1997


10. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance . São Paulo : Nova Critica, 1969.


11. WOOLF, Virginia. Orlando. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

sábado, junho 14, 2008

Da matéria onírica


“O homem não é mais escravo da razão”.
Andre Breton
Limite1 é a emancipação pelo sonho. Pintura inacabada de Monet. Subversão da experiência na poesia impressionista das figuras. O sentido da fixidez revelado pelas algemas no filme, consagra a idéia de um cinema-ontológico preso a determinação estrutural; que morre logo em seguida para nascer uma ontologia pura, simples, que é a própria vida. Limite é o não limite porque foge as dimensões da moldura; instabilidade do universo que se transforma através de nossos olhos; sentimento infinito em permanente deslocamento que joga com a suposta imobilidade das coisas, das pessoas. Um barco refém atingido pelas ondulações nos traz a memória de um rochedo cuja erosão diagnosticada modifica o sentido do tempo. O devir rochedo é a sua constante exposição ao movimento das águas e do ar. Logo, a potência do filme está na ênfase sucessiva da antítese movimento x repouso, sem reconciliação; porque tudo é relação de movimento e de repouso, entre moléculas ou partículas, entre as árvores e o vento, de poder afetar e ser afetado. Quando Auguste Rodin esculpiu a “Mulher agachada” (1880-82), ele evitava uma aparência de acabamento, preferindo deixar algo para imaginação; como em toda a sua obra. Do mesmo modo o filme, tal como a escultura impressionista, nos transporta para a terceira dimensão na luz, na espontaneidade, na fragmentação e desintegração da forma operados; em algum momento, também, pelo jogo de luz e sombra. Impressões transitórias, sempre. Como neste poema de Manuel Bandeira:
“A onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda.”2

Sobre os movimentos europeus de vanguarda utilizados no filme, além do Impressionismo, vejo o Dadaísmo e o Surrealismo como ocupantes de um lugar especial; onde se destroem os sistemas baseados na razão e na lógica, substituindo-os por valores ancorados no primitivo e no irracional. Essa edificação do inconsciente, liberta de todas as amarras numa abordagem artística de imagens e sons, questiona o próprio estabilishment da arte numa dialética da memória; tornando os personagens rítmicos, autônomos e realizando, ao mesmo tempo, uma extraordinária paisagem em contrapontos complexos; acordes subtendidos ou inventados: é a máquina de costurar que se compõe ao rosto da mulher numa espécie de pulsação ativa do movimento (Lembrei-me de Vertov!), até o balançar das árvores pelo vento ou das telhas se compondo ao céu. Enfim, uma poética que Mario Peixoto cortou e recombinou em cada fotograma/verso com o objetivo, talvez, de dessacralizar o passado através das fantasias daquele mundo burguês tão estável no qual ele mesmo havia crescido; reação contra o retoricismo, a frieza das estruturas formais, o descritivismo inanimado e as exterioridades pomposas que, ainda, tem fundas raízes na nossa vida cultural; e o filme é, sem dúvida, uma reação atemporal contra o mau gosto nas artes.
Notas
1. Filme de Mario Peixoto;1931.
2.Extraordinário poeta modernista brasileiro. Ver mais em: BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1971.

Bibliografia

3. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

4. XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema: antologia. Organizador: Ismail Xavier. Rio de Janeiro: Edição Graal: Embrafilmes, 1983.