Vale dizer, em primeiro lugar, que é um texto que analisa o filme “The Departed” (Os Infiltrados/2006)1 de Martin Scorsese (Oscar 2007 de melhor diretor); espécie de crônica policial/suspense que toca no individualismo, no preconceito racial, social, de gênero, na imigração e na crise de identidade nos tempos da globalização; sinalizando, inclusive, uma disputa (ou integração?) tecnológica e, também cultural entre Eua e China; mantendo, ironicamente, um tipo de conservadorismo histórico, nacionalista e demagógico muito particular à indústria cultural norte-americana; mesmo depois da guerra fria. O elenco espetacular (Leonardo Di Caprio, Matt Damon, Jack Nicholson) não absolve o tipo de psicologia da sociedade que eles representam; universo multicultural onde o sofrimento, a frustração e impotência dos personagens derivam da falsidade de um sistema que necessita funcionar, “nos dois lados”, com alta produtividade e eficiência. Scorsese consegue tratar o lícito e o ilícito como um problema ético do tipo “spinosita” onde a liberdade e o livre arbítrio se chocam no esvaziamento dos conceitos de perfeição e imperfeição, valor e desvalor, bem e mal no seu tradicional significado. A dialética da infiltração é a não existência de uma fronteira concreta ou simbólica que determine as coisas. Tudo é falso! Nesse sentido, a preocupação objetiva será discutir a narrativa do filme, resumidamente. Começamos na relação entre montagem e roteiro; gênero baseado, aqui, nas emoções fortes, nos sentimentos e no naturalismo. Logo em seguida, o uso dos flashbacks nos permitirá entender como este recurso justifica, endossa aquilo que está sendo contado; e que, ao mesmo tempo, a dimensão espaço-temporal simula uma quebra cronológica sem, no entanto, sair dela. Num terceiro momento, a composição de imagens, articulação expressiva e simbólica, tomam lugar. E por último, entender a relação dos blocos dramáticos; condensação de imagens e sons em movimento que, juntos, constroem o resultado final da obra cinematográfica.
1)Relação Montagem/Roteiro:
Vemos o teatro e da literatura como heranças de uma tradição cinematográfica que submetem o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto a possibilidade (do espectador) de sentir o aspecto ideológico do que foi exposto. Um filme de ação e violência pede isso; ao contrário estaria transgredindo toda liturgia comercial que inspira o cinema norte-americano desde os tempos de Griffith; e o roteirista William J. Monaham e a montadora preferida de Scorsese, Thelma Schoonmaker, conseguiram reelaborar juntos, nessa idéia, uma melodia bem orquestrada que resultou no Oscar de melhor montagem e de melhor roteiro adaptado para uma espécie de thriller policial que afirma essa conjugação simbiótica entre teoria e prática; mesmo sabendo das modificações e problemas que sempre ocorrem no momento da filmagem. A antinaturalidade do filme se traduz na montagem dinâmica, pela consecução e pela ênfase através daquilo que não se mostra diretamente: o sentido informal das coisas, o deslocamento, a perda de referencialidade; daí o tráfico do microchip como propósito de identificação e integração dos circuitos. A profundidade psicológica é um outro dado que nos ajuda a pensar um tipo temporalidade em desconstrução.
2) O uso de Flashbacks:
A temporalidade em permanente deslocamento acompanha a uma tendência histórica, típica da modernidade, numa quebra do cronológico em direção a instantaneidade e onipresença dos acontecimentos. Uma questão curiosa seria a genealogia dos detetives Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) e Colin Sulivan (Matt Damon); que acontece em poucos minutos, ajudando a construir e apresentar as suas respectivas “qualidades e defeitos” para o espectador. Embora exista uma série de paralelismos que simulem uma justificativa formal para as ações na dinâmica do antes e depois, o que temos, no filme, é uma síntese do presente em constante transfiguração. Não que todas ações aconteçam no mesmo tempo; mas na perspectiva temporal que as condensa, estica a duração e prega uma natureza variável do tempo; que o torna tão falso quanto os personagens. Nessa medida, é o nosso psiquismo que constrói essas relações; pensamento segundo regras de análise e síntese que, sem o instrumento cinematográfico, o homem teria sido incapaz de realizar.
3) Composição de imagens:
O corte invisível funciona perfeitamente e não se perde na dinâmica que ele mesmo sugere: a de compor as diferenças. Interessante percebermos no início do filme uma espécie de epígrafe que situa o espectador sobre um tipo de conflito social em Boston. Relação onde as imagens e o estilo testemunhal sugerem uma intervenção semelhante ao documentário; personagens em sua maioria negros e anônimos falam do preconceito que os divide, imagens da polícia, ônibus apedrejado forçam uma compreensão “realista”; espécie de crítica que toca na sensibilidade do espectador sobre o atual estado das coisas. Logo em seguida um texto em off de Frank Costello (Jack Nicholson) serve de ligação para que ele se apresente já na “ficcionalidade” como um dos protagonistas. A temperatura de cor se modifica sublinhando o espaço do documentário e da ficção, que se fundem. O simbólico funciona num ritmo em que as imagens também agridem umas às outras ratificando um sintoma pesado, canceroso. De que maneira nós poderíamos identificar a diegese e a extra-diegese como propostas “equivalentes” numa estrutura clássica? Se a diegese do filme nos coloca numa trama policial, a extra-diegese nos diz que as relações humanas promovem um estado de coisas onde o crime é o desequilíbrio, a vertigem, o princípio de complexidade e de estranheza; tudo se desliga e liga numa indiferença total. Não existe afetividade nem tampouco transparência, somente conexões frias e anômalas. As imagens não se compõe na presença afetiva do discurso mas num tipo de comportamento artificial em forma de jogo; onde as pessoas não se trocam, se conectam, apenas.
4) Relação entre os blocos dramáticos dentro do filme.
O paralelismo e a elipse foram os recursos utilizados em quase todo o filme. Situações que podem ilustrar essa idéia, acontecem no momento em que o Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) descobre que Colin Sulivan (Matt Damon) é o policial corrupto infiltrado. Os dois estão conversando no departamento de polícia quando Colin Sulivan pede licença e vai para uma outra sala para verificar no computador, sigilosamente, o registro sobre o histórico de Costigan. No mesmo tempo em que ocorre esta ação, Billy Costigan, sozinho, reconhece, em cima da mesa de Sulivan, o envelope que ele próprio tinha escrito e entregado para a quadrilha de Frank Costello com as suas próprias informações (nome completo, seguro social, conta bancária...). Intrigado, ele sai da sala, nota que Sulivan está, ainda no outro espaço verificando a sua ficha e vai embora. Sulivan então termina e volta para entregar o registro, impresso, para Costigan e percebe que ele fugiu por ter descoberto o segredo. Na mesma hora, Sulivan entra, novamente, no sistema e apaga o histórico de Costigan. Logo em seguida uma elipse ocorre; e vemos, já em outro prédio, Costigan entregando à Madeleine (Vera Farmiga; psicanalista e mulher de Sulivan com quem ele teve um flerte) um outro envelope que deve ser guardado e só aberto quando ele pedir ou em caso de emergência. Essas duas cenas embora descritivas quebram o raccord alguma vezes com a finalidade, acredito, de aumentar a intensidade dramática e a expectativa sobre o que irá acontecer depois. Tudo é falso! Até os cortes. A dramaturgia não se traduz na incerteza enquanto discurso “racional” mas no efeito emotivo em que essa incerteza opera; e, de alguma maneira, os blocos conseguem se comunicar agressivamente obedecendo uma estética clássico-narrativa menos previsível. Acho que Scorsese de alguma maneira quebra o teorema da equação exata e reativa uma contigüidade que fotografa o inconsciente coletivo de uma modernidade onde ninguém pode ser absolvido de nada. Muito menos a igreja católica. Ele afirma isso no signo, na técnica, em cada fotograma; chegamos, enfim, a um tempo onde as coisas passam do domínio da lei (a ordem, a verdade, o capital, o valor, a economia, o significado) para o domínio da regra (o jogo, o rito, o cerimonial, o ciclo, a repetição). “Os Infiltrados” é a própria encenação do falso. Os blocos dramáticos nada mais são do que circuitos integrados em planos que conduzem o destino dos acontecimentos sem destino. Não existe o crime perfeito, nem final feliz, nem os rostos; restam, apenas, as máscaras.
Notas
1. Filme baseado no roteiro de Siu Fai Mak e Felix Chong.
Bibliografia
1. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
2. REISZ, Karel.; MILLAR, Gavin. A técnica da montagem cinematografica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
2 comentários:
lembrando que o multiculturalismo não é privilégio nem criação dos EUA, como os estadunidenses parecem acreditar... agora com a possibilidade de um presidente negro, os EUA vão se julgar exportador do multiculturalismo... se cabe a algum país se julgar exportador do multiculturalismo, o título se adequaria mais ao Brasil, país da miscigenação, do sincretismo (com toda a carga de dor que existe no sincretismo religioso para os povos dominados) e da antropofagia...
Constatações antropológicas me permitem utilizar o termo "multiculturalismo"; pela diáspora dos povos no México; a imigração européia no Norte e o uso de trabalho escravo no Sul dos Eua.
Postar um comentário