Ao tomarmos, resumidamente, como objeto de análise F for Fake, vemos que a tão cultuada abstração utópica pela verdade se desmancha no seu próprio exorcismo. Não se trata, apenas, de confundir o real; trata-se de produzir um simulacro em plena consciência do jogo e do artifício, instaurando a dúvida sobre a realidade da terceira dimensão, imitando e ultrapassando o efeito do real. O ilusionista e a criança deixam claro essa predisposição à dúvida radical sobre o princípio de inteligibilidade. Tudo é falso! Logo, posso simular todas as coisas. O verossímel consiste em uma dialética do verossímel e do inverossímel. O inverossímel consiste na negação dessa dialética, na desunião radical do verossímel e do inverossímel e, por via de consequência, na autonomia do princípio do inverossímel. Enquanto o verossímel supõe a cumplicidade dialética do inverossímel, o inverossímel fundamenta-se em si mesmo, em plena incompatibilidade. Logo, Orson Welles é o mestre do jogo e é, ele próprio, enquanto imagem, o princípio do inverossímel; reinado onde triunfa absoluto. Seu filme se impõe como “sedução”; que é a figura bem mais radical de desligamento, de distração, de ilusão e de desvio; de alteração da essência e do significado, de alteração da identidade e dos sujeitos (Ele é Americano ou Mexicano? Lembre-mo-nos de “A Marca da Maldade1”). Logo, a “sedução” proposta em F for Fake é o excesso do outro e da alteridade, é a vertigem do mais diferente que o diferente (e partir daí toda a discussão sobre a autenticidade da obra de arte). Diante disso, a expressividade não está na imputação das coisas a uma instância significativa mas na relação de estranhamento de cada uma delas no tempo e no movimento.
Welles nos conduz na própria ironia de aprender as coisas, mas ironia suspensa, abstrata, tornada metafísica. Os objetos do trompe-l'oeil guardam a mesma fantástica plenitude da descoberta de sua imagem pela criança, algo de uma alucinação imediata anterior à ordem perspectiva. Importante situarmos esse devir-criança; não tanto esquematicamente como pensou Espinoza, mas de uma relação que deveríamos imprimir sobre as coisas e elas sobre nós. Tal como Picasso pintou, sem juízo, pelo prazer; e o filme evoca uma espécie de cubismo analítico; pela decomposição e pela falta de compromisso com a forma. Vemos que, ao contrário de todo o espaço da Renascença, que se organizara segundo uma linha de fuga em profundidade, no trompe-l'oeil de F for Fake o efeito de perspectiva é de alguma forma projetado adiante. Ao invés de os objetos fugirem panoramicamente diante do olho que os varre, aqui são eles que “enganam” o olho por uma espécie de relevo interior; não naquilo em que fariam acreditar num mundo real que não o é, mas naquilo em que frustram a posição privilegiada de um olhar. Essa frustração aceita pelo olhar é motivada pela crença; “orientação psicológica e motora previsível” de que, também, Deleuze toma parte na oposição do sensório motor tradicional e as situações óticas sonoras. O olhar é traído naquilo que pensa que vê; tal como Narciso o foi quando deparou-se com seu duplo refletido no espelho d'agua; alteridade radical, morte da representação pelo outro eu-imagem. O próprio Orson Welles se coloca como figura espectral e debocha de si mesmo representação; tal como Renée Magritte (Ceci n'est pa un pipe!) com a inexistência das propriedades do signo representado. Tudo é falso! Logo, aquilo que o pintor belga surrealista sugere dialoga com o filme porque esvazia a potência sedutora da forma-sentido e reativa a potência sedutora da expressão-composição. Tudo podemos ver, menos um cachimbo. Tudo podemos crer, menos nas verdades. Logo, em nada devemos acreditar. Devemos morrer como realidade e nos produzir como engano pela imagem; porque somente através dessa negociação sensual e incestuosa com ela, com nosso duplo, com nossa morte, que ganhamos nosso poder de sedução: o de viver a antinaturalidade das coisas.
Bibliografia de apoio:
1.Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
2.Bosi, Alfredo. "Fenomenologia do Olhar" in Novaes, Adauto. O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
3.Debray, Regis. Vida e morte da imagem. São Paulo: Vozes, 1993.
4.Machado, Arlindo. A ilusão especular. Introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense, 1984.
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