quarta-feira, julho 23, 2008

Infiltrações!

Vale dizer, em primeiro lugar, que é um texto que analisa o filme “The Departed” (Os Infiltrados/2006)1 de Martin Scorsese (Oscar 2007 de melhor diretor); espécie de crônica policial/suspense que toca no individualismo, no preconceito racial, social, de gênero, na imigração e na crise de identidade nos tempos da globalização; sinalizando, inclusive, uma disputa (ou integração?) tecnológica e, também cultural entre Eua e China; mantendo, ironicamente, um tipo de conservadorismo histórico, nacionalista e demagógico muito particular à indústria cultural norte-americana; mesmo depois da guerra fria. O elenco espetacular (Leonardo Di Caprio, Matt Damon, Jack Nicholson) não absolve o tipo de psicologia da sociedade que eles representam; universo multicultural onde o sofrimento, a frustração e impotência dos personagens derivam da falsidade de um sistema que necessita funcionar, “nos dois lados”, com alta produtividade e eficiência. Scorsese consegue tratar o lícito e o ilícito como um problema ético do tipo “spinosita” onde a liberdade e o livre arbítrio se chocam no esvaziamento dos conceitos de perfeição e imperfeição, valor e desvalor, bem e mal no seu tradicional significado. A dialética da infiltração é a não existência de uma fronteira concreta ou simbólica que determine as coisas. Tudo é falso! Nesse sentido, a preocupação objetiva será discutir a narrativa do filme, resumidamente. Começamos na relação entre montagem e roteiro; gênero baseado, aqui, nas emoções fortes, nos sentimentos e no naturalismo. Logo em seguida, o uso dos flashbacks nos permitirá entender como este recurso justifica, endossa aquilo que está sendo contado; e que, ao mesmo tempo, a dimensão espaço-temporal simula uma quebra cronológica sem, no entanto, sair dela. Num terceiro momento, a composição de imagens, articulação expressiva e simbólica, tomam lugar. E por último, entender a relação dos blocos dramáticos; condensação de imagens e sons em movimento que, juntos, constroem o resultado final da obra cinematográfica.


1)Relação Montagem/Roteiro:

Vemos o teatro e da literatura como heranças de uma tradição cinematográfica que submetem o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto a possibilidade (do espectador) de sentir o aspecto ideológico do que foi exposto. Um filme de ação e violência pede isso; ao contrário estaria transgredindo toda liturgia comercial que inspira o cinema norte-americano desde os tempos de Griffith; e o roteirista William J. Monaham e a montadora preferida de Scorsese, Thelma Schoonmaker, conseguiram reelaborar juntos, nessa idéia, uma melodia bem orquestrada que resultou no Oscar de melhor montagem e de melhor roteiro adaptado para uma espécie de thriller policial que afirma essa conjugação simbiótica entre teoria e prática; mesmo sabendo das modificações e problemas que sempre ocorrem no momento da filmagem. A antinaturalidade do filme se traduz na montagem dinâmica, pela consecução e pela ênfase através daquilo que não se mostra diretamente: o sentido informal das coisas, o deslocamento, a perda de referencialidade; daí o tráfico do microchip como propósito de identificação e integração dos circuitos. A profundidade psicológica é um outro dado que nos ajuda a pensar um tipo temporalidade em desconstrução.


2) O uso de Flashbacks:

A temporalidade em permanente deslocamento acompanha a uma tendência histórica, típica da modernidade, numa quebra do cronológico em direção a instantaneidade e onipresença dos acontecimentos. Uma questão curiosa seria a genealogia dos detetives Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) e Colin Sulivan (Matt Damon); que acontece em poucos minutos, ajudando a construir e apresentar as suas respectivas “qualidades e defeitos” para o espectador. Embora exista uma série de paralelismos que simulem uma justificativa formal para as ações na dinâmica do antes e depois, o que temos, no filme, é uma síntese do presente em constante transfiguração. Não que todas ações aconteçam no mesmo tempo; mas na perspectiva temporal que as condensa, estica a duração e prega uma natureza variável do tempo; que o torna tão falso quanto os personagens. Nessa medida, é o nosso psiquismo que constrói essas relações; pensamento segundo regras de análise e síntese que, sem o instrumento cinematográfico, o homem teria sido incapaz de realizar.


3) Composição de imagens:

O corte invisível funciona perfeitamente e não se perde na dinâmica que ele mesmo sugere: a de compor as diferenças. Interessante percebermos no início do filme uma espécie de epígrafe que situa o espectador sobre um tipo de conflito social em Boston. Relação onde as imagens e o estilo testemunhal sugerem uma intervenção semelhante ao documentário; personagens em sua maioria negros e anônimos falam do preconceito que os divide, imagens da polícia, ônibus apedrejado forçam uma compreensão “realista”; espécie de crítica que toca na sensibilidade do espectador sobre o atual estado das coisas. Logo em seguida um texto em off de Frank Costello (Jack Nicholson) serve de ligação para que ele se apresente já na “ficcionalidade” como um dos protagonistas. A temperatura de cor se modifica sublinhando o espaço do documentário e da ficção, que se fundem. O simbólico funciona num ritmo em que as imagens também agridem umas às outras ratificando um sintoma pesado, canceroso. De que maneira nós poderíamos identificar a diegese e a extra-diegese como propostas “equivalentes” numa estrutura clássica? Se a diegese do filme nos coloca numa trama policial, a extra-diegese nos diz que as relações humanas promovem um estado de coisas onde o crime é o desequilíbrio, a vertigem, o princípio de complexidade e de estranheza; tudo se desliga e liga numa indiferença total. Não existe afetividade nem tampouco transparência, somente conexões frias e anômalas. As imagens não se compõe na presença afetiva do discurso mas num tipo de comportamento artificial em forma de jogo; onde as pessoas não se trocam, se conectam, apenas.


4) Relação entre os blocos dramáticos dentro do filme.

O paralelismo e a elipse foram os recursos utilizados em quase todo o filme. Situações que podem ilustrar essa idéia, acontecem no momento em que o Billy Costigan (Leonardo Di Caprio) descobre que Colin Sulivan (Matt Damon) é o policial corrupto infiltrado. Os dois estão conversando no departamento de polícia quando Colin Sulivan pede licença e vai para uma outra sala para verificar no computador, sigilosamente, o registro sobre o histórico de Costigan. No mesmo tempo em que ocorre esta ação, Billy Costigan, sozinho, reconhece, em cima da mesa de Sulivan, o envelope que ele próprio tinha escrito e entregado para a quadrilha de Frank Costello com as suas próprias informações (nome completo, seguro social, conta bancária...). Intrigado, ele sai da sala, nota que Sulivan está, ainda no outro espaço verificando a sua ficha e vai embora. Sulivan então termina e volta para entregar o registro, impresso, para Costigan e percebe que ele fugiu por ter descoberto o segredo. Na mesma hora, Sulivan entra, novamente, no sistema e apaga o histórico de Costigan. Logo em seguida uma elipse ocorre; e vemos, já em outro prédio, Costigan entregando à Madeleine (Vera Farmiga; psicanalista e mulher de Sulivan com quem ele teve um flerte) um outro envelope que deve ser guardado e só aberto quando ele pedir ou em caso de emergência. Essas duas cenas embora descritivas quebram o raccord alguma vezes com a finalidade, acredito, de aumentar a intensidade dramática e a expectativa sobre o que irá acontecer depois. Tudo é falso! Até os cortes. A dramaturgia não se traduz na incerteza enquanto discurso “racional” mas no efeito emotivo em que essa incerteza opera; e, de alguma maneira, os blocos conseguem se comunicar agressivamente obedecendo uma estética clássico-narrativa menos previsível. Acho que Scorsese de alguma maneira quebra o teorema da equação exata e reativa uma contigüidade que fotografa o inconsciente coletivo de uma modernidade onde ninguém pode ser absolvido de nada. Muito menos a igreja católica. Ele afirma isso no signo, na técnica, em cada fotograma; chegamos, enfim, a um tempo onde as coisas passam do domínio da lei (a ordem, a verdade, o capital, o valor, a economia, o significado) para o domínio da regra (o jogo, o rito, o cerimonial, o ciclo, a repetição). “Os Infiltrados” é a própria encenação do falso. Os blocos dramáticos nada mais são do que circuitos integrados em planos que conduzem o destino dos acontecimentos sem destino. Não existe o crime perfeito, nem final feliz, nem os rostos; restam, apenas, as máscaras.


Notas


1. Filme baseado no roteiro de Siu Fai Mak e Felix Chong.


Bibliografia


1. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


2. REISZ, Karel.; MILLAR, Gavin. A técnica da montagem cinematografica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

sexta-feira, julho 11, 2008

A potência do Falso e o Trompe-l'oeil

Ao tomarmos, resumidamente, como objeto de análise F for Fake, vemos que a tão cultuada abstração utópica pela verdade se desmancha no seu próprio exorcismo. Não se trata, apenas, de confundir o real; trata-se de produzir um simulacro em plena consciência do jogo e do artifício, instaurando a dúvida sobre a realidade da terceira dimensão, imitando e ultrapassando o efeito do real. O ilusionista e a criança deixam claro essa predisposição à dúvida radical sobre o princípio de inteligibilidade. Tudo é falso! Logo, posso simular todas as coisas. O verossímel consiste em uma dialética do verossímel e do inverossímel. O inverossímel consiste na negação dessa dialética, na desunião radical do verossímel e do inverossímel e, por via de consequência, na autonomia do princípio do inverossímel. Enquanto o verossímel supõe a cumplicidade dialética do inverossímel, o inverossímel fundamenta-se em si mesmo, em plena incompatibilidade. Logo, Orson Welles é o mestre do jogo e é, ele próprio, enquanto imagem, o princípio do inverossímel; reinado onde triunfa absoluto. Seu filme se impõe como “sedução”; que é a figura bem mais radical de desligamento, de distração, de ilusão e de desvio; de alteração da essência e do significado, de alteração da identidade e dos sujeitos (Ele é Americano ou Mexicano? Lembre-mo-nos de “A Marca da Maldade1”). Logo, a “sedução” proposta em F for Fake é o excesso do outro e da alteridade, é a vertigem do mais diferente que o diferente (e partir daí toda a discussão sobre a autenticidade da obra de arte). Diante disso, a expressividade não está na imputação das coisas a uma instância significativa mas na relação de estranhamento de cada uma delas no tempo e no movimento.

Welles nos conduz na própria ironia de aprender as coisas, mas ironia suspensa, abstrata, tornada metafísica. Os objetos do trompe-l'oeil guardam a mesma fantástica plenitude da descoberta de sua imagem pela criança, algo de uma alucinação imediata anterior à ordem perspectiva. Importante situarmos esse devir-criança; não tanto esquematicamente como pensou Espinoza, mas de uma relação que deveríamos imprimir sobre as coisas e elas sobre nós. Tal como Picasso pintou, sem juízo, pelo prazer; e o filme evoca uma espécie de cubismo analítico; pela decomposição e pela falta de compromisso com a forma. Vemos que, ao contrário de todo o espaço da Renascença, que se organizara segundo uma linha de fuga em profundidade, no trompe-l'oeil de F for Fake o efeito de perspectiva é de alguma forma projetado adiante. Ao invés de os objetos fugirem panoramicamente diante do olho que os varre, aqui são eles que “enganam” o olho por uma espécie de relevo interior; não naquilo em que fariam acreditar num mundo real que não o é, mas naquilo em que frustram a posição privilegiada de um olhar. Essa frustração aceita pelo olhar é motivada pela crença; “orientação psicológica e motora previsível” de que, também, Deleuze toma parte na oposição do sensório motor tradicional e as situações óticas sonoras. O olhar é traído naquilo que pensa que vê; tal como Narciso o foi quando deparou-se com seu duplo refletido no espelho d'agua; alteridade radical, morte da representação pelo outro eu-imagem. O próprio Orson Welles se coloca como figura espectral e debocha de si mesmo representação; tal como Renée Magritte (Ceci n'est pa un pipe!) com a inexistência das propriedades do signo representado. Tudo é falso! Logo, aquilo que o pintor belga surrealista sugere dialoga com o filme porque esvazia a potência sedutora da forma-sentido e reativa a potência sedutora da expressão-composição. Tudo podemos ver, menos um cachimbo. Tudo podemos crer, menos nas verdades. Logo, em nada devemos acreditar. Devemos morrer como realidade e nos produzir como engano pela imagem; porque somente através dessa negociação sensual e incestuosa com ela, com nosso duplo, com nossa morte, que ganhamos nosso poder de sedução: o de viver a antinaturalidade das coisas.
Bibliografia de apoio:

1.Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.

2.Bosi, Alfredo. "Fenomenologia do Olhar" in Novaes, Adauto. O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

3.Debray, Regis. Vida e morte da imagem. São Paulo: Vozes, 1993.

4.Machado, Arlindo. A ilusão especular. Introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Espinoza e o movimento

A subversão da forma pelo movimento, tema observado neste artigo, se insere como preocupação elementar nas discussões sugeridas sob o domínio da Filosofia Empirista; cujo edifício teórico nos permite refletir algumas idéias relacionadas a expressão; tendo como base o texto “Lembranças a um espinosista”1.; discutido, neste trabalho, de forma livre, anti-acadêmica, porque avesso a qualquer tipo de sintoma imobilizante no processo de articulação dos fenômenos da cultura; em especial o Cinema; admitindo a hipótese de que o pacto que rege atualmente as operações do pensamento é o da crise nos modelos de representação e anti representação. O termo crise é posto, aqui, como módulo divisório entre duas categorias elementares que trabalharemos em conjunto: a primeira diz respeito a tudo aquilo que pertence ao domínio da linguagem e da razão. Nesse lado temos a experiência traumática das formas e a impossibilidade de superarmos a fragilidade esquemática de suas representações que, apoiadas na redundância do significado, as paralizam através de códigos e meta-códigos. Temos nessa metade a operação de Lévi-Strauss (Antropologia), Vladimir Propp (Literatura) e Nikolai Trubetzkoy (Morfologia); prática onde se permite determinar uma estrutura homóloga no interior de uma dada ordem de fenômenos, além da condenação peremptória das formas. Diferente disso, a segunda categoria se revela na expressão; sendo, portanto, vetorial, performática; fora dos pontos e das coordenadas; fazendo fugir em todas as direções; não existindo contorno algum; apenas a simulação radical de todas as coisas em planos de composição que, pelo vigor, nos traga uma espécie de recompensa sensorial e criativa; porque a idéia de gozo não está no sentido mas na potência estilizada das imagens. Nesse contexto, o espelho não se permite refletir coisa alguma mas todas as coisas; anamorficamente. Logo, essa díade linguagem x expressão, resumidamente introduzida, serve de parâmetro àquilo que Espinoza observa como movimento x repouso.



1. Fazer do movimento um dado imediato da imagem é entender a sua relação com o repouso; ao mesmo tempo que admitir o Cinema como dado imediato da expressão é entender a sua inclinação desconfortante para a linguagem. Debate permanente sinalizado por Espinoza cujo princípio elementar se define em planos composição. Vejamos:


“É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimentos absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando nesse ou naquele agenciamento individuado, de acordo com os seus graus de velocidade e lentidão”.2


A qualidade transgressora do Cinema é a própria imagem em seu desejo pelo choque do pensamento (lembrei-me de Eisenstein!); que recolhe o essencial de outras artes, herda o necessário e converte em potência o que ainda só era possibilidade.



2. A natureza é a anti-natureza que se decompõe no choque de movimentos em direção ao pensamento; célula múltipla e divisível onde:


“...cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O Plano de consistência da natureza é uma imensa máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são agenciamentos ou indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas.”.3


Películas no esquema abstrato onde o choque tem um efeito sobre o espírito, ele o força a pensar e a pensar o todo. Esse todo é o próprio sentido do filme; representação indireta do tempo que decorre do movimento. Alain Resnais soube explorar esse tempo acronológico sob uma figuração essencialmente cubista, fragmentada no seu filme “O Ano Passado em Marienbad”.



3. A montagem é no pensamento o próprio “processo intelectual”, ou o que, ante o choque, pensa o choque. Já a imagem, visual ou sonora, tem harmônicos que acompanham a dominante sensível, e entram, por conta própria em relações supra-sensoriais:


“Plano fixo de vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. (...). Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim polvo ou Sépia (...)”.4


A Plicatura Espinosista nos mostra que o orgânico tem por correlato o patético. É desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plástica, uma matéria sinalética, carregada de traços e expressões, visuais, sonoras, sincronizadas ou não; que redigem no abstrato aquilo que se afirma opondo e sobrepujando as próprias partes. Uma tela de Salvador Dalí nos serve como exemplo; aludindo à idéia surrealista de sintaxe pura.



4. O Cinema é sempre narrativo, e cada vez mais narrativo (o que é trágico!), mas é dysnarrativo (neologismo de Robbe-Grillet) na medida em que a narrativa é afetada por repetições, permutações e transformações detalhadamente explicadas pela nova estrutura. Todavia, uma semiótica pura não pode seguir as vias dessa semiologia, pois não há narração (nem descrição) que sejam um “dado” das imagens. É preciso notar que:


“Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com o desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com um fundamento escondido na profundeza das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem, com as multiplicidades ou individualidades que ele recorta.”5


A diversidade das narrações, para Espinosa, não pode se explicar pelos avatares do significantes, pelos estados de uma estrutura da linguagem que se suportaria subjacente às imagens em geral. Ela remete apenas a formas sensíveis de imagens e a signos sensitivos correspondentes que não presupõe narração alguma. Os tipos sensíveis não se deixam substituir por processos de linguagem. Jackson Pollock através de seu expressionismo abstrato é ruptura anárquica, labiríntica, pela composição.



5. A potência do falso na expressão só existe sob o aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras. Diante disso:


“A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõe um indivíduo, que o decompõe ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.”6


O indivíduo fará parte desta cadeia, numa ponta como artista, na outra como potência do falso (F for Fake de Orson Welles). E a narração não terá outro conteúdo senão a exposição desses falsários, seus deslizes de um a outro, as metamorfoses de uns nos outros ou em si mesmo. O escritor tcheco Franz Kafka atinge esta dimensão onírica e crítica em seu conto “A Metamorfose” onde “numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”



6. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Logo:


“..., o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida.” 7


As categorias de vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. A atitude cotidiana é o que põe antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador do termo. A attitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como esse fora infinitamente mais longínquo do mundo exterior. Personagem de Virgínia Woolf, Orlando, dorme homem e acorda mulher; ambigüidade permanente que traduz a dimensão desta passagem. O tempo Cronos é rompido na sua previsibilidade, assim com o gênero na sua vocação para um único estado de espírito. Nessa medida, um outro tempo, o tempo Aion, acronológico, fere o sentido preliminar da expectativa e nos lança na potência espetacular da crise; que é a própria negação da forma que determina o corpo, os órgãos que possui e as funções que exerce.



7. Enfim, chegamos ao devir-criança de Espinosa; que é o da experiência cognitiva em curto-circuito, da memória volátil, altamente experimental e do não julgamento. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela:


“Não se trata de animismo, não mais o que mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. (...). O Espinosimo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo.”8


O artista quando movido por este afecto, torna-se hóspede inconstante e aguerrido do sonho; entretanto, arrumá-lo, esquematizá-lo, seria o mesmo que destruir uma construção viva e prendê-la ao inteligível. O Cinema bem comportado é a criança que ainda não alcançou a espontaneidade anárquica dos movimentos; que, atingidos, exploram a dimensão pictórica do falso e do agenciamento explosivo na criação.



Conclusão


Apenas uma sombra que não pode ser vista!




Notas



1.DELEUZE, Gilles. Lembranças a um espinosista, I. In: Devir-Intenso, devir-animal, devir imperceptível. In: Mil Platôs 4. São Paulo, Ed. 34, 2005.

2. idem, pág. 41.

3. idem, pág. 39.

4. idem, pág. 40.

5. idem, pág. 39.

6. idem, pág. 42.

7. idem, pág. 39.

8. idem, pág. 42.




Bibliografia



1. BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.


2. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix,. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.


4. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.


5. DESCARTES, René. Discurso sôbre o método. São Paulo : Hemus 1972.


6. KAFKA, Franz. A metamorfose. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993.


7. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

8. MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982.

9. PROPP, V. IA'. (Vladimir IAkovlevich). As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: M. Fontes, 1997


10. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance . São Paulo : Nova Critica, 1969.


11. WOOLF, Virginia. Orlando. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.