sexta-feira, julho 11, 2008

Espinoza e o movimento

A subversão da forma pelo movimento, tema observado neste artigo, se insere como preocupação elementar nas discussões sugeridas sob o domínio da Filosofia Empirista; cujo edifício teórico nos permite refletir algumas idéias relacionadas a expressão; tendo como base o texto “Lembranças a um espinosista”1.; discutido, neste trabalho, de forma livre, anti-acadêmica, porque avesso a qualquer tipo de sintoma imobilizante no processo de articulação dos fenômenos da cultura; em especial o Cinema; admitindo a hipótese de que o pacto que rege atualmente as operações do pensamento é o da crise nos modelos de representação e anti representação. O termo crise é posto, aqui, como módulo divisório entre duas categorias elementares que trabalharemos em conjunto: a primeira diz respeito a tudo aquilo que pertence ao domínio da linguagem e da razão. Nesse lado temos a experiência traumática das formas e a impossibilidade de superarmos a fragilidade esquemática de suas representações que, apoiadas na redundância do significado, as paralizam através de códigos e meta-códigos. Temos nessa metade a operação de Lévi-Strauss (Antropologia), Vladimir Propp (Literatura) e Nikolai Trubetzkoy (Morfologia); prática onde se permite determinar uma estrutura homóloga no interior de uma dada ordem de fenômenos, além da condenação peremptória das formas. Diferente disso, a segunda categoria se revela na expressão; sendo, portanto, vetorial, performática; fora dos pontos e das coordenadas; fazendo fugir em todas as direções; não existindo contorno algum; apenas a simulação radical de todas as coisas em planos de composição que, pelo vigor, nos traga uma espécie de recompensa sensorial e criativa; porque a idéia de gozo não está no sentido mas na potência estilizada das imagens. Nesse contexto, o espelho não se permite refletir coisa alguma mas todas as coisas; anamorficamente. Logo, essa díade linguagem x expressão, resumidamente introduzida, serve de parâmetro àquilo que Espinoza observa como movimento x repouso.



1. Fazer do movimento um dado imediato da imagem é entender a sua relação com o repouso; ao mesmo tempo que admitir o Cinema como dado imediato da expressão é entender a sua inclinação desconfortante para a linguagem. Debate permanente sinalizado por Espinoza cujo princípio elementar se define em planos composição. Vejamos:


“É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimentos absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando nesse ou naquele agenciamento individuado, de acordo com os seus graus de velocidade e lentidão”.2


A qualidade transgressora do Cinema é a própria imagem em seu desejo pelo choque do pensamento (lembrei-me de Eisenstein!); que recolhe o essencial de outras artes, herda o necessário e converte em potência o que ainda só era possibilidade.



2. A natureza é a anti-natureza que se decompõe no choque de movimentos em direção ao pensamento; célula múltipla e divisível onde:


“...cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O Plano de consistência da natureza é uma imensa máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são agenciamentos ou indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas.”.3


Películas no esquema abstrato onde o choque tem um efeito sobre o espírito, ele o força a pensar e a pensar o todo. Esse todo é o próprio sentido do filme; representação indireta do tempo que decorre do movimento. Alain Resnais soube explorar esse tempo acronológico sob uma figuração essencialmente cubista, fragmentada no seu filme “O Ano Passado em Marienbad”.



3. A montagem é no pensamento o próprio “processo intelectual”, ou o que, ante o choque, pensa o choque. Já a imagem, visual ou sonora, tem harmônicos que acompanham a dominante sensível, e entram, por conta própria em relações supra-sensoriais:


“Plano fixo de vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. (...). Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim polvo ou Sépia (...)”.4


A Plicatura Espinosista nos mostra que o orgânico tem por correlato o patético. É desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plástica, uma matéria sinalética, carregada de traços e expressões, visuais, sonoras, sincronizadas ou não; que redigem no abstrato aquilo que se afirma opondo e sobrepujando as próprias partes. Uma tela de Salvador Dalí nos serve como exemplo; aludindo à idéia surrealista de sintaxe pura.



4. O Cinema é sempre narrativo, e cada vez mais narrativo (o que é trágico!), mas é dysnarrativo (neologismo de Robbe-Grillet) na medida em que a narrativa é afetada por repetições, permutações e transformações detalhadamente explicadas pela nova estrutura. Todavia, uma semiótica pura não pode seguir as vias dessa semiologia, pois não há narração (nem descrição) que sejam um “dado” das imagens. É preciso notar que:


“Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com o desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com um fundamento escondido na profundeza das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem, com as multiplicidades ou individualidades que ele recorta.”5


A diversidade das narrações, para Espinosa, não pode se explicar pelos avatares do significantes, pelos estados de uma estrutura da linguagem que se suportaria subjacente às imagens em geral. Ela remete apenas a formas sensíveis de imagens e a signos sensitivos correspondentes que não presupõe narração alguma. Os tipos sensíveis não se deixam substituir por processos de linguagem. Jackson Pollock através de seu expressionismo abstrato é ruptura anárquica, labiríntica, pela composição.



5. A potência do falso na expressão só existe sob o aspecto de uma série de potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras. Diante disso:


“A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõe um indivíduo, que o decompõe ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.”6


O indivíduo fará parte desta cadeia, numa ponta como artista, na outra como potência do falso (F for Fake de Orson Welles). E a narração não terá outro conteúdo senão a exposição desses falsários, seus deslizes de um a outro, as metamorfoses de uns nos outros ou em si mesmo. O escritor tcheco Franz Kafka atinge esta dimensão onírica e crítica em seu conto “A Metamorfose” onde “numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”



6. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Logo:


“..., o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida.” 7


As categorias de vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. A atitude cotidiana é o que põe antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador do termo. A attitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como esse fora infinitamente mais longínquo do mundo exterior. Personagem de Virgínia Woolf, Orlando, dorme homem e acorda mulher; ambigüidade permanente que traduz a dimensão desta passagem. O tempo Cronos é rompido na sua previsibilidade, assim com o gênero na sua vocação para um único estado de espírito. Nessa medida, um outro tempo, o tempo Aion, acronológico, fere o sentido preliminar da expectativa e nos lança na potência espetacular da crise; que é a própria negação da forma que determina o corpo, os órgãos que possui e as funções que exerce.



7. Enfim, chegamos ao devir-criança de Espinosa; que é o da experiência cognitiva em curto-circuito, da memória volátil, altamente experimental e do não julgamento. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela:


“Não se trata de animismo, não mais o que mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. (...). O Espinosimo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo.”8


O artista quando movido por este afecto, torna-se hóspede inconstante e aguerrido do sonho; entretanto, arrumá-lo, esquematizá-lo, seria o mesmo que destruir uma construção viva e prendê-la ao inteligível. O Cinema bem comportado é a criança que ainda não alcançou a espontaneidade anárquica dos movimentos; que, atingidos, exploram a dimensão pictórica do falso e do agenciamento explosivo na criação.



Conclusão


Apenas uma sombra que não pode ser vista!




Notas



1.DELEUZE, Gilles. Lembranças a um espinosista, I. In: Devir-Intenso, devir-animal, devir imperceptível. In: Mil Platôs 4. São Paulo, Ed. 34, 2005.

2. idem, pág. 41.

3. idem, pág. 39.

4. idem, pág. 40.

5. idem, pág. 39.

6. idem, pág. 42.

7. idem, pág. 39.

8. idem, pág. 42.




Bibliografia



1. BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.


2. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.


3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix,. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.


4. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.


5. DESCARTES, René. Discurso sôbre o método. São Paulo : Hemus 1972.


6. KAFKA, Franz. A metamorfose. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993.


7. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

8. MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982.

9. PROPP, V. IA'. (Vladimir IAkovlevich). As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: M. Fontes, 1997


10. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance . São Paulo : Nova Critica, 1969.


11. WOOLF, Virginia. Orlando. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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