quinta-feira, setembro 02, 2010

O Choque, a Ordem e o Consenso: Uma introdução ao debate sobre o público e o privado no discurso do jornal O Globo.

Numa época essencialmente estática, a conservação de rituais imutáveis pode ser um reforço genuíno da estabilidade e do consenso. Porém, num período de mudança, conflito ou crise, o ritual pode permanecer deliberadamente inalterado, de maneira a dar a impressão de continuidade, comunidade e segurança; embora existam indícios contextuais esmagadores em contrário. Na Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, com as ações do Choque de Ordem (política municipal contra a desordem urbana), observa-se, desde o início do mandato do Prefeito Eduardo Paes, em janeiro deste ano (2009), uma “nova” modalidade de intervenção no espaço concreto e simbólico, onde o vigor autoritário do Estado se consagra como aparelho de poder e, também, organizador de determinado consenso sobre a finalidade supostamente racional, burocrática de suas medidas (GRAMSCI, 2000); referendado por setores da sociedade civil vinculados à iniciativa privada e pela imprensa, ações estratégicas de higienização e saneamento antropológico no espaço urbano têm sido alcançadas num tipo de percepção que substitui o anterior sistema tecnológico de um espaço coerente e totalizante (FOUCAULT) da antiga gestão, por uma “retórica de pedestre”, de trajetórias que têm uma “estrutura mítica”; compreendida como “uma história construída a partir de elementos tomados de expressões comuns; uma história alusiva e fragmentária cujas lacunas se confundem com as práticas sociais que ela simboliza (CERTAU, 1984). Como podemos observar nesta passagem:


“RIO – O secretário municipal de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, disse, no início da tarde desta terça-feira, que, passada a primeira fase do choque de ordem (que será permanente), é chegada a hora de um choque de civilidade. Neste sentido, ele lançou a primeira edição de um pequeno Manual de Ordem Pública, - como O GLOBO antecipou em março - com oito dicas para que o cidadão colabore com a ordem na cidade. A idéia é que os usuários do manual - que tem uma tiragem de 400 mil exemplares, e será distribuído em associações de bairros, subprefeituras e sedes de administração regional - destaquem suas páginas para entregar a quem for flagrado cometendo alguma irregularidade, como estacionar nas calçadas ou andar com cachorro sem coleira e não recolher suas fezes das ruas.” 1


Essa moldura introdutória, além de complexa, nos permite refletir sobre um tipo de construção discursiva que interage no movimento de uma história cada vez sugerida factualmente; presentificada e, sobretudo, anti-dialética. Se considerarmos que, na Modernidade, a prática jornalística em sua vocação “iluminista” foi encarada como objetiva, moral, universal, na Pós-Modernidade (BAUMAN, 1998), vemos que as “formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento foram absorvidas pelo mito, pela religião e pela liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio de nossa própria natureza humana” (HARVEY, 1993). É neste sentido que a imprensa reivindica sua vocação industrial, pedagógica e histórica nas relações de produção; sua vitalidade estratégica como aparelho de hegemonia e, ao mesmo tempo, o seu duplo papel de funcionamento na sociedade civil: de um lado as iniciativas industriais monopolistas (criação, produção, distribuição, etc.) e de outro as cultural-ideológicas: tentativa de estabelecer continuidade ritual ou simbólica com um passado histórico apropriado. Nosso recorte, entretanto, se concentra na segunda função destacada por entendermos que o discurso jornalístico se constrói, reproduz e modifica as representações do mundo, as identidades e relações sociais em jogo em cada situação de comunicação vivida (PINTO, 2002); em particular, nesse caso, como adaptadora do progresso e da moralidade da população carioca às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho produtivo e das relações de produção.

Embora se perceba, dentre outras coisas que o significante “Choque de Ordem”, represente, na construção sintática do texto jornalístico, um artifício de necessidade absolutamente formadora e de coeficiente ilusório, cabe-nos localizar, interpretar e explicar cientificamente sobre a vitalidade das formas discursivas, das motivações político ideológicas e de como, nesse espaço simbólico, se constroem, reproduzem e modificam as identidades e relações sociais. Lembrando, com Bourdieu (1989), que o poder simbólico é aquele que consegue transformar relações de dominação/submissão, em relações afetivas e que, quanto maior o sentimento mobilizado, maior o ocultamento das diferenças sem que se evidencie a violência perpetrada; parto do princípio de que, no campo das ciências sociais, em particular, nenhuma escolha “de palavras” é ingênua.

Acredito na importância de refletir sobre os enunciados contidos nos discursos das matérias do jornal O Globo na cobertura do Choque de Ordem no ano de 2009 e 2010; problematizar a função hegemônica que esse tipo de estrutura discursiva exerce na enunciação, reprodução e transformação das representações do público e do privado no imaginário coletivo; as relações de força simbólicas que envolvem esse processo de comunicação, bem como as formas de luta pela imposição da visão legítima do mundo social. Esse processo se concentraria nos seguintes tópicos:



1) Perspectiva histórica e social. Modernidade e Pós-modernidade. Rever criticamente o contexto político do jornalismo impresso sob uma perspectiva histórico-discursiva; de como ele evoluiu nos últimos anos em relação às questões de caráter social e coletivo; sobre as contradições entre essas mudanças, finalidades discursivas e a relação do espaço público/privado, bem como as transformações técnicas e sociais da comunicação. Indústria e Cultura. Balanço de teses e dissertações sobre o assunto.

2) Motivações Políticas do discurso. Enunciação e performance. Os intelectuais e o Estado (problema teórico). O Estado e a Privatização. A Imprensa e o Estado. O Globo no debate político. Sociedade Civil e Sociedade Política. Infra-estrutura e Superestrutura. O saber e o poder. Variações semânticas e léxicas do termo Estado nas referências e conflitos de interesse público e privado. As representações do poder na imprensa escrita; da noção de complementaridade e diferença nas relações e práticas sociais. O Positivismo e o Marxismo. A causalidade e a dialética. O fim e o meio. A invenção das tradições.

3) Filosofia do Discurso e Hegemonia. A razão e o imaginário. A linguagem e o fetiche. Diferenças entre comunicar e informar; as formas da comunicação/enunciação no contexto da vida da Cidade do Rio de Janeiro. Da força dos signos aos efeitos de superfície. A idéia de verdade e de progresso que envolve o Choque de Ordem. O imperativo ético do consenso e a luta de classes; os aparelhos de hegemonia e a questão ideológica.

4) Revisão crítica do Jornalismo. Por uma nova agenda política dos acontecimentos. Materialismo cultural e abertura de consciência. Da pirâmide invertida a teoria crítica. Os intelectuais orgânicos no processo da mudança.



A relevância científica e histórica deste estudo dentro das pesquisas existentes se concentra na necessidade em mostrar como são representadas as ações da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro no O Globo – um dos jornais de maior prestígio no país; escolhido pela influência exercida nas classes A e B – que tem como eixo um tipo particular de construção e mediação discursiva que não termina nos limites do social, mas que contamina o terreno geral do político (MARTIN- BARBERO, 2006). Nosso problema central será o de pensar criticamente o Choque de Ordem no redimensionamento abstrato entre dois espaços “supostamente” delimitados: o espaço público e o espaço privado; analisando e descrevendo os efeitos semânticos do poder e da verdade nesse jogo enunciativo; sobre o que significa ser público numa sociedade onde se renova um tipo de mediação e intervenção das instituições de Estado e da imprensa no espaço público; que consagra interesses individuais e privados de classe em detrimento de interesses coletivos. Lembrando o trabalho de Foucault em analisar a produção do discurso e as estratégias de subjetivação do poder, esse nosso interesse lança o desafio de refletir, inicialmente, um tipo de representação social e política na linguagem da comunicação jornalística tradicional; onde, se percebe, no lugar da substância interpretativa concreta, os efeitos de superfície, a estetização forçada. Diante disso, nossa primeira hipótese de trabalho será a evolução do valor político do signo; entendido, aqui, como fetiche, simulacro. A função específica desse valor político para determinada estabilidade social e construção hegemônica formará, nesse conjunto, a segunda hipótese de trabalho.

O termo hegemonia, acima mencionado, ocupa um lugar muito especial no desenvolvimento argumentativo de nosso texto porque faz-nos localizar e discutir, na situação histórica atual, a relação entre complexos industriais de informação e o Estado/Governo (sociedade civil e política); na construção de uma subjetividade que escamoteia as contradições dos fenômenos sociais em desenvolvimento na busca de certo controle material e simbólico dos espaços. Portanto, além da identificação desses grupos, nossa terceira hipótese avançará na idéia de um ordenamento parcial do sentido como espelho de uma realidade mercantil que “governa” o mundo empírico; na perspectiva, inclusive, de um discurso já integrado ao plano sistêmico da estrutura de poder.

Concluo esta etapa retomando a pergunta sugerida por Gramsci que encerra a dissertação de mestrado de Cátia Guimarães2 e nos estimula no sentido de uma discussão teórica mais aprofundada sobre a relação entre Estado e Sociedade e suas mediações discursivas: “Se a escola é de Estado, por que não será de Estado também o jornalismo, que é a escola dos adultos?” (2004, p.229).




Notas

1 Fragmento extraído da matéria “Depois do choque de ordem, Bethlem anuncia choque de civilidade”; publicado no jornal O Globo em 14/04/2009.

2 Ver mais sobre essa dissertação em http://www.pos.eco.ufrj.br/


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