segunda-feira, julho 10, 2006

O Século XX e a História do tempo presente

Seria ousado demais pensarmos em subjetividade e morte da história ao mesmo tempo?
Ora, se tudo é linguagem podemos admitir a história como falsa paráfrase do mundo imáginário do historiador; sua ficção é tão original quanto o fenômeno histórico. Hobsbawn, Thompson, Ferro... em todos eles a reflexão enviesada, parcial daquilo que ousamos reproduzir como sendo registro de uma ação concreta, encontra lugar. O jogo, portanto, é metonímico; a totalidade subtraída renasce como algo inédito, que nunca esteve lá mas que agora está aqui (relação que fazemos entre passado e presente) acediando as consciências por uma nova interpretação do fenômeno histórico – este em qualquer tempo, sempre “impenetrável”. Logo, o que vemos então é uma espécie de angústia particular; uma espécie de vácuo que se estabelece entre o historiador (a interpretação) e os acontecimentos (a coisa em si). É nesse vácuo que o texto histórico justifica o seu papel elementar. Ele higieniza, purifica, dá um caráter simbólico a fragmentos que ocupam o vazio de uma racionalidade sempre em busca de respostas.
A historiografia no mundo contemporâneo faz-nos pensar em algo fractal, desordenado. O social se perdeu no político, a psicanálise já não está para Freud e sim no exorcismo do corpo pelos signos do sexo. A antropologia já não está para o homem e suas tradições, mas para a sua representação artificial. É neste princípio de desquilíbrio que a história agora se reproduz; ela também absorve as outras ciências e por isso desaparece. A Nova História nada mais é do que a celebração virtual de sua morte antes ignorada; o princípio da interdisciplinaridade é a resposta funcional, metamórfica para um tradicionalismo elitista, apolítico, irracional que antes predominava; onde a própria história política jamais iria sobreviver sem a contribuição de outras disciplinas. Labrousse, Vilar, Agulhon, Vovelle sinalizaram este fenômeno pela necessidade de superação da velha história; tal como fez Marx pela superação da velha filosofia pelo materialismo dialético. O curioso é que se por um lado essas contradições nos servem de base para a reinterpretação subjetiva da história pela cultura no seu sentido Latu (sinalizamos aqui o homem e o agora), por outro vemos que esta mesma subjetividade é incapaz de apreeder um significado único, preexistente; transformando-se numa cadeia initerrupta de tranferências.
Peter Burke nos ajuda a refletir sobre estas questões de maneira mais conjuntural, avaliando didaticamente a quebra de paradigma da história e os problemas inerentes as fontes e métodos. Segundo ele:

“Os historiadores, assim como os antropólogos sociais, tentam agora por a nu as regras latentes da vida cotidiana (...). Neste ponto, a história e a cultura parecem estar se dissolvendo uma na outra. Alguns profissionais definem-se como “novos” historiadores culturais, outros como historiadores “socioculturais”. Seja como for, o impacto do relativismo cultural sobre o escrito histórico parece inevitável.” 1


O relativismo histórico, nesse caso, sinaliza não somente a perda de uma utopia como fim ideal, mas do próprio tempo histórico, na sua continuidade e nos seus desdobramentos. Algo como um curto-circuito aconteceu, um desvio súbito da dimensão temporal – efeitos precedendo causas, fins precedendo origens. A vida cotidiana emerge como objeto de investigação e, ao mesmo tempo empurra o historiador em direção a uma espécie de paradoxo linguístico; para o momento explosivo da modernidade; momento de liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações insconscientes, liberação da arte. O que isto siguinifica? Que o trabalho da história já terminou? Que o trabalho de luto está começando? Que o sistema de informação substituiu o sistema da história e está começando a produzir acontecimentos da mesma maneira que o Capital começa a produzir trabalho? Da mesma forma que o trabalho, sob estas circunstâncias, não tem mais um significado próprio, o acontecimento produzido pela informação nos parece não ter um significado histórico próprio. A história social, antropológica, a história política se encontram numa espécie de crise dialética. Burke observa que os debates históricos não são mais conduzidos segundo as regras. Para ele “o acordo tradicional sobre o que constitui uma boa explicação histórica foi rompido”. E indaga:
“Será esta fase de transição, a ser substítuida por um novo consenso, ou o caminho em que os debates históricos serão conduzidos no futuro?”2

A pergunta nos faz pensar em transição não como um processo cronlógico mas anacrônico. O início e o fim já não obedecem necessariamente a uma ordem cíclica; que sempre balizou a investigação histórica. O tempo não é mais contado progressivamente, por adição, começando de uma origem – mas por subtração, começando do fim. A transição neste caso é ininterrupta. Um outro aspecto que refuta a potencial substituição desta fase por um novo consenso é a quebra da tensão linear entre a modernidade e o progresso; a linha da História ficou embaraçada: o último grande acontecimento “histórico” – a queda do Muro de Berlim – significou algo mais próximo de um enorme arrependimento por parte da História. Em vez de buscar perspectivas novas, a História parece estar se estilhaçando em fragmentos dispersos, e períodos de acontecimentos e conflitos que pensávamos pertencer ao passado estão sendo reativados. A grande questão do debate histórico não é a ruptura com os antigos métodos de análise mas a readaptação constante a um passado e presente que gravitam e se alternam “sub-repticiamente” em todas as esferas.
Em outro momento Peter Burke recupera Edward Thompson e Roger Chartier; que, para ele:

“...foram muito bem-sucedidos ao revelar as inadequações das explicações materialistas e deteministas tradicionais do comportamento individual e coletivo de curto prazo, e na demonstração de que tanto na vida cotidiana, quanto nos momentos de crise, o que conta é a cultura. Por outro lado, pouco fizeram para desafiar a importância dos fatores materiais, do ambiente físico e de seus recursos, de longo prazo.”3


Diante disso, como situar esse universo cultural na problemática exposta por Burke? Uma cultura popular? Certamente não, no sentido como entendem muitos, como uma cultura de transmissão predominantemente oral e ancorada na tradição. Reflexo então da cultura das elites, veiculando por caminhos que ainda estão para ser analizados precisamente as idéias matrizes da cultura burguesa da elite das Luzes? Essa leitura é também bastante empobrecedora, reduzindo a um simples reflexo, expressões originais e autônomas. É preciso portanto, para avançar, sair de hoje em diante da oscilação esterelizante entre cultura de elite – cultura popular. Algo que trate das representações, nas resistências e na criatividade do imaginário coletivo. Porém, como fazê-lo?
Selecionamos, mesmo que resumidamente, algumas maneiras distintas de problematizar a história cultural e suas respectivas contradições:
Vejamos o conceito de circularidade cultural proposto por Carlo Gisburg ; que absorve o conflito de classes em uma dimensão sociocultural globalizante e nos ajuda a pensar as noções de cultura popular e de circularidade cultural quer em trabalhos de reflexão teórica, quer nas suas pesquisas sobre religiosidade, feitiçaria e heresia na Europa quinhentista. Partindo de uma definição aparentemente empírica, inspirada na antropologia cultural, Gisburg acaba por formular uma visão original de cultura popular que não se confunde com “cultura imposta às classes populares” pelas classes dominantes, nem exprime um triunfo de uma “cultura original e espontânea” das classes populares sobre os projetos aculturadores das elites letradas. Para o historiador a cultura popular se define antes de tudo pela sua oposição e pelas suas relações que mantém com a cultura letrada ou oficial das classes dominantes; cultura que é filtrada pelas classes subalternas de acordo com os seus próprios valores e condições de vida.
Num outro momento, apontamos Michail Backtin; que resgatou a cultura de classes e mais precisamente a carnavalização da cultura austera das elites no vocabulário da praça pública e no escárnio popular. Segundo Backtin na estrutura da linguagem, todas as noções substanciais formam um sistema inabalável, constituído de pares indissolúveis e solidários: o reconhecimento e a compreenção, a cognição e a troca, o diálogo e o monólogo, sejam eles enunciados ou internos, a interlocução entre o destinador e o destinatário, todo signo provido de significação e toda significação associada ao signo, identidade e variabilidade, o universal e o particular, o social e o induvidual, a coesão e divisibilidade, a enunciação e o enunciado.
Poderíamos, talvez, aproximar Ginsburg de Backtin na medida que o historiador italiano foi além, ao propor abertamente o conceito de circularidade, noção somente implícita em Backtin, que se preocupava mais com as oposições do que com as interpenatrações culturais entre as classes.
Pensamento distinto do de Ginsburg-Backtin é o formulado por Roger Chartier, que se afasta dos modelos anteriores na medida em que rejeita a visão dicotômica cultura popular/erudita em favor de uma noção abrangente, mas não homogênea, de cultura. Para ele o social só faz sentido nas práticas culturais e as classes e os grupos só adquirem alguma identidade nas configurações intelectuais que constroem nos símbolos de uma realidade contraditória representada. Segundo Chartier a dicotomia popular/letrado é em tudo problemática, posto que no caso de Backtin, é através de um erudito que o popular se torna perceptível, ao passo que, no caso de Ginsburg, é através de “um homem do povo” que se pode perceber os fragmentos da cultura livresca ministrada com ingredientes da tradição oral.
O ùltimo modelo que apresentamos é o de Edward Thompson. A trajetória deste historiador é completamente distinta daquela seguida por Ginsburg ou Chartier, haja vista a temática da obra, voltada para a classe operária inglesa em meio ao processo de industrialização. Seu campo teórico valoriza a resistência social e a luta de classes em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares num contexto histórico de transformação. Vem aí o apreço do autor pela antropologia, capaz de ancorar interpretações verticalizadas de ritos e comportamentos comunitários, bem como por microtemas, a exemplo da festa; e também processos simultâneos de construção de uma identidade que valorize o popular no campo cultural.
Têm-se, de toda a forma, com Gisburg, Backtin (este no campo da linguística), Chartier ou Thompson, quatro modelos possíveis de história cultural que talvez respondam as indagações que Peter Burke levanta no texto “A nova história, seu passado e seu futuro”. Três modelos que, embora diferentes e até excludentes maneiras, reablitam a importância dos contrastes e conflitos sociais no plano cultural, evitando quando menos, as ambiguidades e concepções interclassistas e descritivas de algumas versões das histórias das mentalidades.


Notas
1 Burke, Peter. A escrita da história: novas perpectivas; tradução de Magda Lopes. São paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p.24.
2 idem p. 33.
3 ibidem p 35.
4 Gizburg, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel,1991.
5 Backtin, Michail. Marxismo e Filosofia da Linguagem; tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vireira. São Paulo: Editora Hucitec, 1979.

Bibliografia de apoio:

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem; tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo. Editora Hucitec, 1979.

FLAMARION CARDOSO, Ciro e VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro. Campus, 1997.

CHAVEAU, Agnès e TÉTART, Philippe. Questões para a história do presente; tradução de Ilka Stern Cohen. Bauru, SP. Edusc, 1999.

VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades; tradução de Maria Julia Goldwasser. São Paulo. Editora Brasiliense, 1987.

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