terça-feira, julho 11, 2006

Deus e o Diabo na Terra do Sol



A síntese entre os opostos, caracterizada pelo barroco, irrompe como linguagem em Deus e o Diabo na Terra do Sol; inquietude que se esforça para encontrar uma justificativa entre a razão e a fé, entre a graça e o livre arbítrio, entre a determinação da vontade e a paixão; algo que funciona como pedaço de um negativo; metonímia revolucionária que fotografa o destino trágico de personagens presos pela mesma fatalidade, dentro e fora do universo fílmico. Espécie de liberação do inconsciente coletivo do camponês brasileiro, do terceiro mundo. Estética que Glauber entendia como grito, rouco mas original, de uma cinematografia crítica que se desloca através de um tempo circular, denso, trágico; onde o homem se constitui como um “títere” no palco do mundo, nas mãos de um deus negro e de um diabo loiro; do clero e do coronelismo. Sentimento de grandeza e esplendor travestido pela angústia interior que cada sertanejo leva consigo; lugar onde virtude e pecado se misturam ao êxtase católico de uma desarmonia sempre paradoxal: a morte é vida, a vida é sonho, o prazer é a escravidão, a penitência , a salvação.
A mise-en-scène em Deus e o Diabo funciona, de inicio, como literatura de cordel que pouco a pouco se transforma em ópera pelo contraste dialético profundo que observamos no decorrer do filme; teoria que o próprio Glauber mais tarde chamaria de trialética; ou seja, a solução dos problemas não aconteceria somente na justaposição dos contrários e sim através de sínteses, por outros caminhos na busca de uma melhor apreensão da realidade social; realidade que em Monte Santo foi considerada digna de ser adornada com serenidade e sinceridade, sem dissimulação diante das coisas mais comuns, mas com uma atitude de reverência acolhedora de tudo que pertence a terra e o homem. Expressão artística que se coloca mais na elegância sóbria do que no artifício retórico. Sobriedade que em Glauber acontece como verdade; um tipo de elegância, que é a transformação mínima da realidade na poesia pedagógica a que se propõe o filme. Intranqüilidade onírica e crítica que se relaciona de maneira direta com o espectador-leitor durante praticamente todas as cenas; movimentos que acabam somente quando os olhos da mente se apropriam de parte do sonhado pelo realizador; ou seja, o filme só termina quando somos preenchidos pelo desafio da transformação dos dados essenciais do homem: o amor, o ódio, o mito, a violência, o esmagamento da estrutura agrária, a seca. Vertigem em preto e branco pelos confins da Bahia; composições ondulantes que se chocam sob a harmonia musical e apocalíptica de Sérgio Ricardo. Sentimento grandioso orientado pelo espaço e pelo tempo; lugar onde repousa o barroco e sua importância revolucionária sobre o ponto de vista ideológico. Visão que se enquadra através de uma realidade pobre e banal; ângulos que conferem uma grandiosidade épica, de planos vastos, das tomadas panorâmicas, com a câmera em movimentos dinâmicos. Correria louca de Manoel e Rosa do sertão para ao mar.
Toda essa ostentação visual e inclinação operística para a pompa e para os efeitos espetaculares em Deus e o Diabo, não estava longe os efeitos da igreja católica e do Concílio de Trento18, ao usar formas sofisticadas do barroco (delírio decorativo, tendência para a monumentalidade, cultivo das grandes massas corais ou sonoras, horror ao vazio, profusão desordenada de formas ornamentais) para facilitar a missão da ideologia da Contra-Reforma. Extraordinária capacidade de assimilação e reflexão que se manifestou em Glauber através de sua quase inexaurível vitalidade artística.




2.1 – A grandeza espiritual dos personagens:
O filme consegue, positivamente, canalizar seus interesses ideológicos mostrando o paradoxo divino como algo superior ao raciocínio humano. Inquietude que se esforça por encontrar equilíbrio entre a razão e a fé, a graça e o livre arbítrio, a determinação da vontade e a paixão. Algo que reflete um estilo que se caracteriza pelo contraste entre a crença (masoquismo penitente) e a realização (utopia). Espécie de mística materialista que desce do céu para organizar a terra e desarmar os possuídos.
Talvez, pelo aspecto alienante e trágico que veste cada personagem em Deus e o Diabo, pudéssemos criar uma relação comparativa entre a arte de Glauber (pela influência de José Lins do Rego19) e o emblemático Dom Quixote do escritor Miguel de Cervantes20. Sentimento que aproxima um brasileiro de um espanhol justamente pela relação estilística; de gosto definitivamente barroco. Juntos, penetraram na complexidade da alma humana e a imortalizaram em seus retratos paradoxais por meio de interpretações mitológicas: Corisco e Dom Quixote, Sancho e Manoel; ainda que tenham conservado aqueles elementos que eram verdadeiramente poéticos para apresentar o mito de uma forma critica, “irônica” e sugestiva, também usaram a visão natural e a recordação histórica para evocar as distâncias no espaço e no tempo; para dar noção de sentimento e de grandeza, na ordem política e militar. Artistas que experimentaram em suas obras o efeito psicológico de luz e silêncio, Glauber e Cervantes nos permitem entender a arte barroca como arauto da Idade Moderna que reverberou de maneira grandiosa no Cinema Novo. Fenômeno que coloca Dom Quixote frente a frente com Deus e com o Diabo.
Nas duas obras, a moral do fracasso em busca da redenção está condicionada por uma interpretação semelhante, que podemos identificar tanto em Dom Quixote quanto no Beato Sebastião. Em ambos os casos, tais personagens são movidos pelo delírio profético, premonitório, de um oásis imaginário que surgiria muito em breve; cavaleiros da justiça que, como Corisco, partiram em busca de uma mudança; seja orientada pela força de São Jorge em Monte Santo, seja pela lança erguida em La Mancha; “filósofos” levados pelo misticismo e pela rebeldia anárquica de um mundo que os reprime; cada um dentro de seu universo; cada um com sua cruz; cada qual com seu discípulo: Sancho e Manoel respectivamente; cegueira e alienação que se renderam à fantasia do absurdo; espécie de linha fronteiriça desenhada entre a sensatez e a demência que nos coloca diante de um paradoxo existencial mas dialético nas duas obras.
O curioso é que podemos entender a grande descoberta tanto de Cervantes quanto Glauber como um quadro barroco em que a moldura parece antes recortar um panorama que poderia sem dúvida estender-se em todas as direções. A primeira parte da história de Dom Quixote não termina com a sua morte; a moldura construída de maneira arbitrária com a apoteose da pluma do autor, não impede que a ação continue, uma vez que esta aparece em suspenso e aberta para a segunda parte. Do mesmo modo, Deus e o Diabo, é o desenvolvimento natural de Terra em Transe; que começa onde o outro termina: no mar; espécie de metáfora da liberdade; e culmina com a morte do poeta Paulo Martins; tipo que poderíamos ligar a Dom Quixote pela instabilidade de sua consciência e pela decepção física e moral que o acompanha até o final da história; fracasso que mais tarde o levaria a morte; final trágico que também liga esses dois personagens.
A aproximação das duas obras está exatamente no reconhecimento da literatura e da cinematografia como legítimo, porque ambas se vêem relacionadas com as formas de arte. Cada uma destas formas pode ser chamada de barroca, porque cada uma é a expressão da mesma visão interior compartilhada pelo cineasta e pelo escritor, de maneira semelhante. Algo que não deixa de sofrer em nossa mente, transformações, interpretações, metamorfoses e disfarces, como a vida de todo herói barroco há de experimentar. Dom Quixote (refiro-me ao livro) e Deus e o Diabo na Terra do Sol conseguem trazer, indiscutivelmente, ao leitor-espectador, uma relação viva com as imagens citadas e projetadas tanto no livro quanto no filme. Algo sempre repleto de tensão e significado. Espécie de locução que não indica de imediato uma direção clara do pensamento; comparável às escadas barrocas que voam em direção de perspectivas inseguras e sonhadoras. Pintura de elementos entrelaçados como poema “À instabilidade das cousas do mundo” de Gregório de Mattos21:


“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas e alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a luz é, porque não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol e na luz, falta a firmeza,
Na formosura não se crê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância”.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância”.





2.2 – O herói barroco entre a cegueira e a violência:

Diferentemente do herói épico, que sempre espera um progresso como resultado de suas “aventuras” e que, no decorrer delas, vai ganhando terreno em diversos planos, Dom Quixote e Corisco, ao final de cada uma das suas, se encontram no mesmo lugar, decepcionados moralmente. De um lado, ilusão de individualidade, de outro, animalidade, vazio espiritual; dois aspectos alimentados por uma cegueira mútua, conduzida pela fatalidade que ambos entendem como destino. Cada um fecha os olhos ante a imagem do outro refletido em si mesmo. Juntos, cada um serve de ponto de referência para compreender o outro. Mas quanto melhor se explicam mutuamente, mais clara e radical se torna suas incompatibilidades. A incerteza que respectivamente os define torna impossível à união entre ambos. O destino que os une é o mesmo que os separa. Encerrados os dois no círculo de uma mesma cegueira partida em metades complementares, deixam patente um mundo incompatível consigo mesmo; um mundo em profunda tensão.
A violência de Corisco não é uma violência “instintiva”, ou como diria um moralista, uma expressão de sua natureza animal. A violência de Corisco é monstruosa, isto é, pertence especificamente a um monstro, não ao espírito e a matéria separadamente. É uma violência que, se transforma o homem em animal, também transforma o animal em homem; confusão caótica, mística de um ser diante de um tempo sempre em estado bruto. Cancro social marginalizado que se esconde atrás de uma rebeldia anárquica; de duas cabeças: Corisco é Lampião, Lampião é Corisco; anverso e reverso de uma mesma moeda. Relação entre o corpo e sua alma (metáfora do corpo) que se encontram ao redor de uma natureza caótica, ameaçadora; cenário sempre áspero e homogêneo nas privações que se impõe os antagonismos de Glauber. Talvez o que o cineasta nos sugere nesta passagem de Deus e o Diabo não seja uma igualdade teórica entre ambas as personagens (Corisco e Lampião) representadas ao mesmo tempo; igualdade essa que se tornaria tão simplista e dogmática como a diferença estabelecida pelo espectador; mas duas faces incompatíveis da mesma coisa. Glauber não nos diz que Corisco é igual a Lampião, mas que Corisco e Lampião são duas faces de uma mesma coisa. O destino faz ilusórias as diferenças, mas é a violência do destino que as cria.
Tão ilusório é o consolo interior experimentado por Corisco no meio desse caos sem lei e sem caminhos quão ilusórios são a liberdade, a lei e os caminhos descobertos pelo “viajante” (duplo sentido) Dom Quixote. Tanto num caso quanto no outro o individuo permanece isolado, nu e solitário em meio a mundo alheio; mundo que não lhe pertence e no qual ele vê apenas o que não pode ver dentro de si mesmo. Filhos da violência; diante deles a verdadeira natureza, espelho do ser, cobre-se com um véu e permanece muda. É mudez do ser, da natureza-ser, que submerge desse “eu” recém-nascido e violento num mundo de espelhismo, num profundo sonho cheio de sombras e quimeras.
Se por um lado o neobarroquismo de Glauber (se assim podemos conceitua-lo) evoca bravura, misticismo, natureza hostil, heroicização popular, marginalização e atraso social – como fragmentos de filmografia que se assenta em bases literárias Sólidas22 e que se fundem a leituras da Bíblia (Antigo Testamento), – Cervantes cria um novo sentido da vida aceitando todas as suas tensões cristãs. Ele o faz substituindo os ornamentos extravagantes por um sólido e novo conteúdo; fenômeno que extrai da verdadeira filosofia da vida e germina através do autêntico Barroco: o Barroco espanhol, o de Velázquez23, o impressionista, o barroco fecundo. Tais paralelos estruturais e estilísticos nos oferecem elementos suficientes e adequados para caracterizar, com mais precisão do que até agora nos era possível, o diferente tratamento que o Barroco de Cervantes e o de Glauber dão a recursos análogos. Estas diferenças podem ser reunidas sob uma série de amostras e notas características:

O barroco de Cervantes
Impressionista
Honesto
Elevado
Claro (relativamente)
Poesia na vida
Desornamentado
Humorítico realista
Comunicação efetiva
Contarste de problemas vitais
Verossimilhança levada ao heróico num fundo realista
O barroco de Glauber
Vulcão
Emocional
Perturbador
Alegórico Trágico
Frenético
Pulsões do inconsciente
Excepcionalidade
Rupturas e discordâncias narrativasDelírio cadenciado pela música/ cinema ritualista
Transparência e opacidade se misturam como algo trágico e ao mesmo tempo festivo; sintoma que se materializa em função de um jogo extremamente alegórico. Tabuleiro de xadrez racional e metafísico onde o cavaleiro enfrenta Deus e o Diabo.
Vimos que uma das pontes mais convincentes que servem, talvez, para se conectar ao estilo de Glauber e Quixote é o barroco de “violentos contrastes;“tempo” visto como um estado de fluxo contínuo e a morte como um processo de decadência; algo que cria uma perspectiva em que a morte e a corrupção da carne dominam a realidade; movimento incessante e repetitivo das partículas menores possíveis tanto em La Mancha quanto em Monte Santo; fluxo que torna constante a desintegração do homem em pó e lágrimas. Como observamos nas passagens abaixo:

Corisco
“Tenho medo de viver sonhando com a luz de bala que joguei em cima do bom e do ruim. Tenho medo do inferno e das alma penada que cortei com meu punhal. Tenho medo de ficar triste e sozinho como um gado berrando pro sol. Tenho medo Cristino. Tenho medo da escuridão da morte”25.


Dom Quixote
“A misericórdia divina desceu sobre mim, apesar de todos os meus erros. (...). Agora compreendo os disparates que pratiquei, levados pelos livros de cavalaria. Errei, errei, errei. E eu gostaria que a minha morte fizesse esquecer as minhas loucuras”24.


A descrença do homem e a relativização religiosa em cada uma dessas passagens, instauraram nesses dois personagens uma visão transitória do mundo e, ao mesmo tempo, a necessidade do festejo (crença) como alienação social e afirmação política. Logo, a máscara tanto em Deus e Diabo quanto em Dom Quixote é, por isso mesmo, simultaneamente trágica e festiva como a vida; artifício do engano e do desengano; jogo poético que consegue apresentar os elementos como formas artísticas distintas e originais.

2.3 – O universalismo barroco de Glauber e Cervantes:
O valor universal de D. Quixote e Deus e Diabo na Terra do Sol se apóiam justamente no fato de que nenhuma interpretação chega a esgotar a profundidade em cada uma das obras, e que cada um pode aproximar-se de cada uma delas com uma atitude diferente e original (conforme observado anteriormente). A multiplicidade de sentidos procedentes e o cenário épico apropriado à captação da tragédia do homem e dos seus conflitos contribuem de maneira única tanto para literatura quanto para cinematografia mundial. Quixote passa o dia e a noite submerso na leitura de romances de cavalaria, perde a razão, se julga cavaleiro andante, sai ao encontro de muitas aventuras, cada uma mais absurda, e, por fim, no leito de morte, arrepende-se de haver desperdiçado sua vida e se extraviado por influência das leituras. Em Deus e o Diabo, Manoel, pobre vaqueiro, foge com sua mulher Rosa após assassinar o patrão explorador, envolvendo-se com beatos e cangaceiros. Nessas duas obras a retórica barroca, na sua avidez de reunir material expressivo para a vastidão de significados que agregam, se propõe aglomerar as figuras mais complexas no repertório estilístico. Escolhas que prevalecem o empenho de submeter à poesia à jurisdição de uma realidade velada pela instabilidade semântica e cênica, tanto em Monte Santo quanto em La Mancha.
O emprego de hierarquias estilísticas (visto no quadro em 2.2), extravagantemente dinamizadoras, permitiu uma linguagem apropriada à visão barroca desses dois artistas. Situação que compreende a priori ao fato estético: uma interrogação repleta de fascínio e pânico em face do limite que vai afrontar. Impossível, pois programar um conteúdo. Este se vai fazendo em cada um deles; e tem a duração da capacidade do sujeito para afrontar o ilimite (a morte). Daí a concepção barroca, em ambas as obras, de figuras estilísticas abertas, dinâmicas, essencialmente válidas e não decorativas.
Para Glauber essa liberdade de assumir uma consciência possível sustentada no plano prático de uma concepção estética dessa natureza – teoria da “Obra aberta” consagrada no livro (1962) de Umberto Eco, já fora, na verdade, uma conquista das vanguardas do séc XX, esboçadas desde as idéias dos dadaístas e de Marcel Duchamp26 – seria levar adiante, como conseqüência natural, um projeto cinematográfico centrado no problema da linguagem, esquematizando na conhecida fórmula, um dos tópicos da poesia pós-simbolista do ocidente: não importa o que se diz, se se sabe como se diz. Compreende-se, assim, o progressivo afastamento de Glauber de categorias como história, argumento, enredo, intriga, encadeamento lógico, trama, continuidade linear, ordenamento psicológico, etc., tudo isso supresso em favor da criação de formas livres. Escolha que justifique, talvez, a sua escolha pelo barroco; que “se opõe” justamente a essas questões. Do mesmo modo, desde sua publicação em 1605, a influência de “Dom Quixote” na narrativa ocidental tem sido cada vez maior; poderíamos dizer que, sobretudo a partir do século 18, foi ganhando um pouco mais de atualidade a cada dia.
Logo, os maiores nomes da criação novelística posteriores a Cervantes confessaram a sua divida com este texto inesgotável. Muitos personagens célebres da ficção moderna, além dos conferidos em Deus e o Diabo, têm traços comuns a D. Quixote: os protagonistas de “O processo” e “O castelo”, de Kafka27, e os de “Lord Jim”, de Conrad28. A multiplicidade de sentidos sem precedentes e o cintilar desses romances são, junto ao humor de Cervantes e sua descoberta da perfeita prosa narrativa, sua contribuição realmente única para a literatura mundial através do perspectivismo barroco.
Diante disso, a aproximação entre Cervantes e Glauber pode ser traduzida pelo drama barroco de suas obras; busca de uma linguagem que tivesse uma correlação com necessidades interiores e sociais, a partir de um vocabulário muitas vezes inadequado e incompreensível. Pinturas que saem dos quadros e permanecem em sensível deslocamento; quase sempre em situação espiritual de oposições e contrastes; formas, sugestões e emoções provenientes de diversas direções; dilatação que originará uma linguagem comum e de grande força centrípeta em todas as comunidades de nova formação cultural, espalhadas pelo mundo. Ao realizar este estudo estilístico comparativo, me baseei em conceitos comuns tanto em Deus e Diabo na Terra do Sol quanto em D. Quixote; estes conceitos comuns e sua execução similar refletem sobre uma interpretação semelhante, que impelia os dois artistas “a perceberem as coisas da mesma forma” e, por conseguinte, a descobrimentos artísticos paralelos, que aqui chamamos de barroco. Elemento que mais fomenta e corroboram esta proposição de uma afinidade particular entre os dois criadores; vivacidade que desfrutamos em suas respectivas obras.

Notas
18Celebrada no tempo do sumo Pontífice Paulo III, em 07 de janeiro do ano do Senhor de 1546. Assunto doutrinário, disciplinar. Decreto de vida e outras atitudes que devem ser observadas no Concilio: O sacrossanto concílio Tridentino, congregado legitimamente no Espírito Santo e presidido pelos mesmos três legados da Sé Apostólica, reconhecendo como o bem aventurado apostolo São Tiago que toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito vem do céu e desce do Pai das Luzes, que concede com abundância a sabedoria a todos os que a pedirem, sem se incomodar com sua ignorância; e sabendo também que o princípio da sabedoria é o temor de Deus, resolveu exortar a todos a cada um dos fiéis cristãos congregados em Trento, que o fazem agora os exorta que procurem emendar-se dos seus erros e pecados cometidos até o presente, e procedam daqui para frente com temor a Deus sem condescender aos desejos da carne, preservando como possa cada um, na oração e confessando freqüentemente, comungando, freqüentando as igrejas e enfim, cumprindo os preceitos divinos, e pedindo também deste Deus, todos os dias, em suas orações particulares, pela paz dos príncipes cristãos e pela unidade da igreja.

19José Lins do Rego, jornalista, romancista, cronista e memorialista, nasceu no Engenho Corredor, Pilar, PB, em 3 de julho de 1901, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de setembro de 1957. Sua obra, mostra o subdesenvolvimento do meio rural convivendo com o relativo progresso urbano, a luta do bem contra o mal, o misticismo dos beatos e a violência dos cangaceiros, a seca persistindo entre os hiatos da terra reverdecida pela benção das chuvas esporádicas, a cruz e o punhal, a amargura do êxodo, o conflito entre a terra e o homem, gerando o fanatismo, a revolta ou a submissão fatalista, no meio da qual emergiam os lideres messiânicos, condutores das almas resignadas. Ingredientes humanos e paisagísticos que Glauber pouco depois assimilaria e rearrumaria em Deus e o Diabo na Terra do Sol. A proximidade da obra de José Lins com D.Quixote viria na Segunda Fase do Modernismo através da triste figura da personagem Capitão Vitorino, em Fogo Morto.

20O terceiro de cinco filhos de um cirurgião itinerante e de uma nobre empobrecida, Miguel de Cervantes Saavedra, nasceu em Alcalá de Henares, Espanha, em 1547, e morreu em Madrid em 1616. Iniciou sua carreira de escritor quase no mesmo momento que Filipe II instalou sua corte e que o espesso véu da inquisição se adensava ainda mais sobre as terras castelhanas. Sua obra Dom Quixote se constitui como um marco na literatura universal; utopia que abarca o enigma da vida nas suas limitações, grandiosidade e vastos horizontes. A fé em algo eterno e transcendente. Sobre isso ver: Cervantes, Miguel. Dom Quixote; texto em português de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro. Editora Tecnoprint, 1971.

21Gregório de Matos e Guerra, poeta baiano nascido em 1636(?) e morto em 1696, denuncia com sua obra o perfil tenso e dividido do povo brasileiro. Com sua produção literária o poeta cria situações desconfortáveis aos poderosos da época, que passam a combatê-lo até transformar sua vida em um verdadeiro inferno.O poema “À instabilidade das cousas do mundo” nos ajuda a entender o pensamento barroco-cinematográfico de Glauber como algo que sobre filtrar muitos bem os ingredientes que Gregório já utilizara, tendo como base à raiz popular. Sobre isso ver: MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Org. José Miguel Wisnik. São Paulo: Cultrix,
s. d.

22O pintor espanhol Diego Rodríguez de Silva Velàzquez (1599-1660) cujo naturalismo barroco permitiu-lhe captar, como ninguém, o que via. Era dotado de uma portentosa capacidade para traçar as pinceladas exatas, com as quantidades de pigmentos justas, a fim de produzir o efeito pretendido. Poderíamos aproximá-lo a Cervantes e ao mesmo tempo a Glauber pela característica inerente ao três de deslocar o interesse pelos mistérios divinos para a psicologia humana.

23Dom Quixote; texto em português de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro. Editora Tecnoprint, 1971, 204.

24Fala de Corisco extraída do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Sobre o filme ver: Avellar, José Carlos. Deus e o Diabo na Terra do Sol. A linha reta, o melaço decana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro. Rocco, 1995.

25Paz, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza; tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo. Editora Perspectiva, 1979.

26O escritor Theco Franz Kafka (1883-1924) evoca , em seus romances (O castelo, O processo..), um homem alienado e oprimido pelo Estado, pela família, pela justiça... . Fenômeno que nos permite aproximá-lo as questões observadas neste trabalho não somente como apoio mas com referência de um dos principais especialistas e sua visão sobre o humanismo ocidental. Sobre isso ver: Kafka, Franz. O Processo; prefácio e tradução de Torrieri Guimarães. Rio de Janeiro. Ediouro, 2000. Ver também: Kafka, Franz. O Castelo; prefácio e tradução de Torrieri Guimarães.São Paulo. Edições TEMA, 2000.
27Jóseph Teodor Konrad Korzeniowski (1857-1924) escritor ucraniano que mais tarde, por conseguir cidadania inglesa, passaria a se chamar Joseph Conrad nos ajuda a entender “Lord Jim” como um verdadeiro “maremoto” intelectual; arrependimento de um jovem que comete uma falha em um naufrágio e passa a vida inteira querendo esquecê-la. Conrad incorpora em sua literatura a vida marítima que o sempre acompanhou (ele foi marinheiro da Marinha Mercante Britânica), além de um sentimento de aventura, nostalgia e culpa; aspectos similares a uma literatura quixotesca. Sobre isso ver: Conrad, Joseph. Lord Jim; tradução de Mário Quintana. São Paulo. Abril Cultural, 1971.

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