terça-feira, julho 11, 2006

Dilemas entre Capital e Trabalho





Ou mudamos, ou morremos: essa é a alternativa. Onde buscar o princípio articulador de uma outra sociabilidade, de um novo sonho para frente? Em momentos de crise total e estrutural precisamos consultar a fonte originária de tudo: a natureza. Que ela nos ensina? Ela nos ensina que a lei básica do universo não é a competição que divide e exclui, mas a cooperação que soma e inclui.”

LEONARDO BOFF









Apresentação

As contradições sociais em nosso país, mapeadas pelo desconforto de um mundo globalizado – fenômeno universal e imperialista liderado pelos Estados Unidos –, nos assustam a cada dia pelo seu caráter invisível, inodoro porém letal. O adjetivo “letal” se justifica aqui no Brasil pela maneira como é conduzida a política econômica, que, ao invés de buscar soluções emergenciais de relevância ecológica, social e cultural, se prostitui no cativeiro da agiotagem internacional e do sofisma político. Doentes, famintos e analfabetos; vítimas e cúmplices da demagogia salvacionista e do ufanismo idiotizado promovido nos meios de comunicação, somos obrigados a compartilhar os “desvios” e incertezas de um mundo “obeso e desequilibrado”. Hoje, nos encontramos coletivamente diante de pelo menos três perguntas cruciais: o que fazer?, qual verdadeiro panorama da contemporaneidade e os fenômenos nela envolvidos?, e como a sociedade brasileira reage a este processo de indeterminação política crescente?
A partir destas questões iremos debater, mesmo que de maneira resumida, como o esquema atual de nossa cultura se move e desaparece pelo excesso de informações; pelo ensaio frenético de suas falsas verdades e pela miragem elitista, jovem, erótica promovida pela ética do consumo. O desaparecimento do espaço público e a suposta “crise de identidade” do sujeito na contemporaneidade. Tendências desfavoráveis e favoráveis serão mostradas, oferecendo uma reflexão sobre as atuais relações de trabalho nos meios de produção; a execução de projetos culturais e o papel estratégico do setor privado na reestruturação social do país também serão observados.
A agudeza do assunto nos espanta pelo terreno pantanoso em que somos obrigados a atravessar. Mas talvez seja este o único caminho em busca de uma justificativa razoável para o surrealismo de nossas aflições.




- Contemporaneidade: Fenômenos extremos.
Os processos que atuam em escala global, sintetizado pelo termo “globalização”, nos contaminam pelo critério autônomo e desequilibrado que operam diretamente sobre as estruturas mentais do “homem moderno” (ou pós-moderno?). O mundo, em realidade e experiência, se tornou mais interconectado, virtual; as relações sociais ficaram “congeladas” pela instantaneidade e onipresença dos acontecimentos; espécie de antagonismo movido pelos extremos; pelo desvio frenético do dinheiro, do sexo, da informação e da comunicação. Vivemos através de uma espécie de charme movido pela imprevisibilidade e saturação de nossas alternativas. Celebramos nossa angústia através da ilusão de reafirmar a sociedade do eu pelo exercício do consumo – a mais qualificada referência do mundo moderno industrial e capitalista. Hábito maniqueísta movido pela “lógica imperiosa de controlar as diferenças e reconhecer a nós mesmos – nossa pseudo superioridade – no espelho do consumo”1. Este, por sua vez, como o totemismo na sociedade tribal, por ser um lugar de constante produção de sentido, torna-se uma poderosa fonte de organização das diferenças na cultura contemporânea.
Repetida de maneira exaustiva, a dialética do consumo se sustenta na utopia de um mundo ideal, narcisista, cujo espelho da fantasia sempre nos trai pelo fascínio da imagem refletida ou pelo discurso ufanista sem qualquer utilidade social. O resultado deste fascínio nos revela um ir além sem sair do lugar; onde tudo se move radicalmente ao passo de que nada acontece. Tudo é representação, encenação. Ficamos presos a um sistema de significações que nos condiciona a buscar satisfações simbólicas que propriamente funcionais. Espécie de invólucro transparente que, ao mesmo tempo em nos refugiamos e ficamos despojados e superprotegidos, somos condenados à privatização e ao descontrole de nossa vida em sociedade mediante um espaço público em transfiguração gradativa.
O progressivo desaparecimento desse espaço público – utilizaremos como recorte à cidade do Rio de Janeiro por razões óbvias – se constitui como sintoma de uma fisionomia urbana “saturada” e excludente, cuja descrição e operação responde a uma concepção funcional e orgânica. Ou seja, analogias médicas e biológicas que, utilizadas no vocabulário e nas representações da cidade pelo poder público, se justificam como essenciais à vida humana do homem moderno. Convém observarmos, entretanto, que o uso de tais analogias e metáforas orgânicas tem subsidiado duas posturas básicas diante da cidade. A primeira – meramente descritiva – mostra-se extremamente simplificadora da realidade. Revela uma atitude de fuga e isolamento diante da complexidade e das contradições da cidade, mantendo o entendimento contido nos limites da analogia em si. Numa segunda postura, a metáfora biológica é mobilizada no delineamento de um modelo ideal de cidade e de ordem cosmopolita, que serve de horizonte para a ação sobre a cidade real. Ambas posturas pressupõem uma atitude que investe numa idealização de funções e características corporais constantes, de matriz utilitarista, disciplinar e positivista, desdenhando de outras possibilidades e sonhos da cidade. Assim, quando se tratam de conseqüências julgadas positivas – como o aumento do número de indústrias, escolas, cinemas, telefones, televisores – fala-se em expansão, crescimento e progresso. Quando ao contrário, aborda aspectos julgados negativos – como o aumento do desemprego, doenças e criminalidade – fenômeno de “inchamento da cidade”. A idéia de inchamento articula-se a de um crescimento problemático – pobreza, insatisfação e revolta, cujas conseqüências devem ser “saneadas” a partir do controle e redução dos espaços. O que para Bauman se traduz através de:

“Bairros vigiados, (...), guardas bem armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente – tudo isso para afastar os concidadãos indesejados, (....), salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos desconhecidos emboscados extramuros” 2.

Quanto menos espaços públicos, mais soluções de força, mais muros privatizantes, mais discriminação e criminalização. Ou há cidadania para todos ou acabará não havendo cidadania para ninguém, por que cada um se abrigará em suas polícias privadas, em seus muros privados, acuado diante dos riscos de um mundo que nós mesmos, privilegiando os interesses mercantis em detrimento dos interesses públicos, criamos e recriamos cotidianamente.
Esta despolarização das relações em sociedade, aliadas a mudanças estruturais e institucionais, tornou-se uma substância corrosiva na desconstrução da identidade cultural de um indivíduo cercado por uma série de identidades possíveis; máscaras, caricaturas; algo que os ligue de maneira instantânea. Espécie de “ingenuidade publicitária onde cada um torna-se empresário da própria aparência”3. De acordo com Stuart Hall, isso ocorre:

“Quando a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, (...), pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades (grifo dele) se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente”4.

Esse processo de aceleração no vácuo, de sobrelanço da produção na ausência de desafio e finalidades sociais; de deslocamento das identidades, reflete o duplo aspecto que se convencionou atribuir à crise : inflação e desemprego. Diante disso, estaremos avaliando a seguir qual como suportar um mercado de trabalho “deficiente”, marcado pela abertura de fronteiras e as políticas de subvenção da produção.


- Trabalho x Homem moderno = epidemia do desafio
O trabalho está inexoravelmente vinculado ao desenvolvimento humano, especialmente na sua forma ontológica, que representa a capacidade de o homem transformar a si próprio e a natureza. Acontece que o trabalho, na sua forma histórica mais identificado à condição de financiamento da sobrevivência humana, tem-se desassociado paulatinamente do desenvolvimento humano. Logo, há um decréscimo no emprego, em todos os níveis, da mão de obra não qualificada à mão de obra mais qualificada. Além desses fatores, há que se acrescentar o chamado “desemprego tecnológico”, comum aos países pobres e aos ricos, como o decorrente do uso de robôs, por exemplo, substituindo seres humanos.
Os aumentos da atividade econômica nos países economicamente fortes têm levado ao aumento de taxas elevadíssimas de desemprego nos países mais frágeis, de diferentes maneiras.
A principal é a desativação de importantes setores econômicos, inclusive de inteiros parques industriais, o que decorre de três motivos:

a) Pelo câmbio sobrevalorizado que leva a um barateamento dos bens produzidos externamente e ao encarecimento dos bens produzidos internamente. A indústria e agricultura locais perdem competitividade tanto para abastecer o mercado interno como para exportar.

b) Pela liberação das importações, em nome do controle interno dos preços, sem que haja contrapartida dos países mais fortes, que continuam exercendo práticas protecionistas em larga escala.

c) Pela substituição da tecnologia e dos serviços, em geral, produzidos internamente pelos produzidos no exterior, especialmente pelas empresas, estatais ou privadas, recentemente vendidas ao capital externo.


Assim, é importante que se perceba que a globalização não requer uma mão de obra tecnicamente muito qualificada para os países mais pobres, pois esses estão desativando setores de sua indústria e perdendo capacidade tecnológica por falta de demanda de insumos tecnológicos pela economia.
Dentro desta perspectiva, observamos aqui no Brasil que, embora as pessoas portadoras de diploma de nível superior tendem a não ficar desempregadas, como demonstram algumas pesquisas, as formadas em universidades menos importantes, vão se ocupar de posições abaixo da qualificação formal que possuem. Engrossarão os quadros de telefonistas, motoristas de táxi, e, até babás, com curso superior, que começam a se espalhar pelo Brasil. Por outro lado, expulsam desses nichos de mercado pessoas menos preparadas formalmente, embora, talvez, perfeitamente aptas a desempenharem a função exigida pelo emprego.
Como reagir diante deste impasse? Charles Handy nos diz que:

“Precisamos de um novo modo de pensar nossos problemas e nosso futuro. Se as contradições e surpresas vão fazer parte deste futuro, não devemos ficar desanimados. A aceitação do paradoxo como um traço de nossa vida é o primeiro para conviver com ele e controlá-lo”5.


O governo sabe há muito tempo que, sozinho, não cumprirá a missão de diminuir as diferenças sociais no País. O setor privado pode ajudar e hoje ocupa uma posição estratégica na reestruturação social brasileira, sobretudo através de alianças intersetoriais para desenvolver projetos culturais.



·União de forças
Boa parte do empresariado já começa a entender que suas companhias devem ir além do objetivo de gerar lucro e distribuí-lo a seus acionistas. É necessário que essas empresas também tratem de modo ético as partes com as quais se relaciona - funcionários, sindicatos, fornecedores, clientes, acionistas, consumidores e comunidades direta ou indiretamente atingidas pela atividade produtiva. E prestem contas dos efeitos positivos e negativos gerados na sociedade a partir de seus processos produtivos.
As grandes mudanças com relação ao investimento em cultura, realizadas particularmente nos últimos anos pela iniciativa privada, foram certamente influenciadas pela política cultural de parceria entre Estado, empresários e comunidade cultural, que vem sendo implementada pelo governo Federal e por alguns governos estaduais e municipais.
Essas mudanças, entretanto, não devem ocultar o fato de que ainda há muito a ser explorado no mercado do patrocínio cultural. É um longo processo onde as empresas precisam compreender o papel que a arte e cultura desempenham na constituição de uma sociedade e a importância de incentivar e preservar esta cultura. Apoiar a cultura é apoiar a preservação da identidade de uma sociedade. E as empresas têm nas mãos a oportunidade de desempenhar o papel de co-responsáveis por esta preservação, na medida em que apóiam os projetos de grupos ou indivíduos ligados à arte e a cultura.
Diante disso, vários critérios são utilizados pelas empresas para decidirem se apóiam ou não um determinado projeto. Entre estes critérios estão as qualificações profissionais dos envolvidos, a audiência ou grupo de clientes que será atingido, a situação financeira ou o orçamento apresentado e o nível dos profissionais que se comprometem com o projeto. Os apoios são dados àquelas pessoas ou grupos mais confiáveis do ponto de vista da empresa, os projetos mais relevantes a ela e os considerados de maior valor artístico. Os projetos que obtém mais sucesso, na maioria dos casos, são aqueles que estão totalmente adaptados à empresa, às suas características, a seu mercado e as suas exigências.
Sabemos que a importância da arte e da cultura dentro de uma sociedade é indiscutível. A união de forças entre o poder público e as empresas produz uma sensível contribuição para elevação da escolaridade como a preparação para o mercado de trabalho de parcela importante da juventude. É através desta trilogia – governo, empresa e sociedade civil – que encontraremos melhores alternativas para o profundo drama social no país.




- Conclusão:
A lógica do mercado obedece a um novo que se inova na novidade criativa; do saber instantâneo que se desloca rapidamente assim como o desejo; estamos todos lutando no terreno pantanoso de nossas consciências pela verdade libertadora da diferença competitiva; pelo empreender, vender, vencer, viver sempre atolados no incognoscível; no acelerar no vácuo da lógica do “eu empresa” e não do “eu sociedade”; na infantilidade progressista da burguesia capitalista sobre uma moral e um progresso que “engessaram” gradativamente a base da pirâmide social sob a lógica da mão de obra especializada; do saber diferente de um povo que não tem como trabalhar hoje para pagar o que comeu ontem. Um povo chamado Brazil.
Diante disso, entendemos que um caminho possível poderá se cristalizar através de um trabalho que venha das transformações políticas, econômicas e sociais, que possam ser equacionadas a partir de uma ação coletiva, consciente e otimista de todos os segmentos da sociedade. A busca de novas alternativas nos coloca diante de algo perturbador mas que ao mesmo tempo nos encoraja sobre algo maior, metafísico; ajuda e cooperação.
O investimento em projetos sociais e culturais serve como balão de oxigênio para um país doente, depressivo que precisa ser tratado aos poucos, coletivamente. A nossa luta começa e termina no mesmo lugar: no amor. Um amor – traduzido como disposição transformadora – que se desenha na educação, na saúde, na segurança; numa ação movida por uma perspectiva nova, consciente, utópica. Talvez seja essa a melhor saída do sertão de nossa angústia em direção ao mar de nossa salvação.


Notas


1Sobre isso ver: ALCEU. Revista de Comunicação, Cultura e Política. In: Totem e consumo: um estudo antropológico de anúncios publicitários. v.1. - , n.1, jul./dez.2000 - . Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Comunicação Social, p. 21.

2Bauman, Zigmunt. Globalização e suas conseqüências; Tradução de Marcus Penchel. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 55.

3Sobre isso ver: Jean Baudrillard, A Transparência do Mal : Ensaio sobre os fenômenos extremos; Tradução de Estela dos Santos Abreu. Campinas, SP : Papirus, 1990, 30.

4Hall, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade; tradução Thomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 8ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.75.

5Handy, Charles. A era do paradoxo; tradução Lauro Santos Blandy; revisão técnica Oscar D’Ambrósio. São Paulo: Makron Books, 1995, p.11.






Bibliografia:

BAUMAN, Zigmunt. Globalização e suas conseqüências; Tradução de Marcus Penchel. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos; Tradução de Estela dos Santos Abreu. Campinas, SP : Papirus, 1990.

HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade; tradução Thomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 8ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

HANDY, Charles. A era do paradoxo; tradução Lauro Santos Blandy; revisão técnica Oscar D’Ambrósio. São Paulo: Makron Books.

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