terça-feira, junho 10, 2008

O digestivo e a impossibilidade estrutural do movimento


O filme se esconde na timidez e na falta de coragem em criar um argumento cuja profundidade filosófica inspire uma reflexão crítica mais realista; porque a trajetória do imigrante nordestino é forjada no jogo sedutor de uma obsessão reativa, cujo maniqueísmo vulgar nos toca, sempre, como falso. A dinâmica social sugerida por “Estômago” não atinge as relações de poder com intensidade, mas apenas como módulo ético, afetivo, entre aquele que manda e a obediência religiosa daquele que obedece; sublinhando, com isso, um certo tipo de inferioridade do homem provinciano; idéia já absorvida com facilidade pelo senso comum. Se Raimundo Nonato é representado como estatística, logo, pode ser pasteurizado semanticamente. Daí toda a facilidade e conveniência de um roteiro comercial. O sobre-trabalho, a exploração do homem pelo homem, não atingem o político mas um tipo de ajuste entre a aparência das coisas, o conflito não aprofundado e o jeitinho como estratégia de disfarce. Essa lógica, quando posta em movimento, subtrai as contradições e superficializa os elementos da estrutura. A suposta relação de poder sugerida no filme, longe de postular uma crítica social na estória narrada, anula a dimensão conflitiva; mergulhando no exotismo, no fetiche, no paralelismo e no melodrama.
O signo alimento tenta atingir a dimensão do erótico porque se articula como fetiche do sexual; não apenas através de uma suposta “falocracia”; mas do signo sexo enquanto potência discursiva, sempre em forma de “jogo” (muito longe do sentido de Jorge Luis Borges). Tal como o feminino que, encerrado negativamente numa estrutura enfraquecida onde se encontra aprisionado, não recobre uma “autonomia” de desejo ou de gozo, nem tampouco reivindica a sua verdade; apenas seduz. A prostituta Iria, nada mais significa do que aparência; logo, é o feminino como aparência que põe em xeque a profundidade do masculino. Diante disso, o que há, no filme, é sempre a tentativa de captar e imolar o desejo do outro; da impotência enquanto sedução. Desafetos, neuroses, angústia, frustração. Tudo o que a psicanálise encontra, sem dúvida, provém do fato de não se poder amar ou ser amado, de não se poder gozar ou se proporcionar gozo; mas o desencantamento radical da sedução e do seu fracasso. Neste sentido, o que sobrevive ao invés da máscara, do disfarce e da simulação, é um tipo de asfixia estrutural, esquemática, fixa; no charme da gastronomia de botequim, do restaurante sofisticado ou do almoço na cadeia; enfim, tudo aquilo que coopera para se justificar no desenho do flashback (relação da imagem atual com imagens-lembrança) narrado pelo personagem, cria um tipo de ficcionalidade que, também, se prostitui. O filme não consegue digerir aquilo que ele próprio expõe e soluça numa espécie de “morfologia”, cujo princípio de saciedade se exerce por meio de uma paixão fetichista. O roteiro de “Estômago” funciona; só não atinge o movimento das imagens; ao contrário, as paralisa. Neste sentido, a vida não é tocada; apenas o teorema do paladar.
O tempo Cronos do filme se bifurca em dois momentos paralelos, cúmplices; fixando os personagens e as coisas, desenvolve uma forma e determina o sujeito até a hora do crime. A narrativa se prende a este movimento porque é escrava de uma fidelidade auto-explicativa. Onde o teatro épico Brechtiano e, sobretudo, o literário são poucos explorados pelo que percebi. Como seria a originalidade de Borges em estender esse jogo a toda ordem social de “Estômago”? Onde vemos apenas uma estrutura de pouco peso, em vista da boa e sólida infra-estrutura das relações sociais respeitada pelo diretor, teríamos a reversão de todo o edifício; além do fazer da indeterminação a instância determinante. Já não é a razão econômica, a do trabalho e da história, já não é o determinismo “científico” das trocas que determina a estrutura social e a sorte dos indivíduos, mas um total indeterminismo, o do Jogo e do Acaso (metáfora da grande feijoada!). A predestinação semântica do filme coincidiria com uma mobilidade absoluta, um sistema arbitrário com a democracia mais radical; troca instantânea de todos os destinos, para satisfazer a “fome” de polivalência de nosso tempo que, ao invés de ser um tempo Cronos, estrutural e previsível, é um tempo Aion, indefinido do acontecimento; linha flutuante que só conhece velocidades; um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar.
A transgressão funciona como atitude à insuficiência discursiva do personagem Raimundo Nonato; na medida em que o ato criminoso nos surpreende por uma espécie de “formalismo bem comportado”, numa articulação essencialmente individualista e não como devir político-social. O “Antropofagismo” de Oswald de Andrade não foi digerido numa coerência estético literária inovadora; mas na repetição dos equívocos da historiografia convencional; devorar a carne para incorporar a força e, ao mesmo tempo, afirmação de um poder e destruição da diferença sobre o outro não adquirem um estatuto pedagógico-reflexivo. A “parte” da mulher comida e o vinho bebido, se compõem, numa espécie de atitude violenta e corrosiva, que poderia representar, talvez, um dos instrumentos de revide possível à cultura imposta pelo “colonizador”. Todavia, a sequência não consagra uma densidade psicológica que nos mova neste impulso. Muito diferente do romance “Palmeiras Selvagens”, de William Faulkner; se trabalharmos com a hipótese particular de um “Herói” entre a Dor e o Nada; onde encontraríamos a loucura e a ingenuidade eternamente modificadas em potências desafiadoras ao longo do percurso delirante das páginas/cenas. Longe desta possibilidade, o filme de Marcos Jorge não consegue atingir um tipo de fenomenologia da digestão; aliás, atinge no sentido Kantiano; através do objeto e de sua dedução lógica no contexto espaço temporal proposto. Muito diferente de Husserl onde os fenômenos físicos não têm intencionalidade e, nesse sentido, todo um processo de “Dispepsia” (má digestão nesse caso), se desenvolveria numa reflexão síntese dos aspectos perceptivos e funcionais do movimento do corpo.
Termino a minha análise sob a hipótese de que “Estômago” se contrapõe radicalmente ao texto “Eztetika da Fome”, escrito por Glauber Rocha; e, ao mesmo tempo, não absorve o fenômeno histórico; tornando-se, com isso, um filme comum.
Bibliografia
BARTUCCI, Giovanna. Borges: A Realidade da Construção: Literatura e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Prólogo de J.B.S. Haldane. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª edição, 1979.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

quinta-feira, junho 05, 2008

O espectro da ontologia brasileira


“(...) Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
(Hino Nacional - Carlos Drummond de Andrade)
Começa Serras da Desordem. Um ensaio etnográfico, antropológico desperta imediatamente os sentidos. Levi Strauss conduz com segurança o meu olhar pelo exotismo estrutural na figura do aborígene sob a experiência primitiva do fogo. Imediatamente, fui surpreendido; corte dos blocos de imagens articuladas; consecução e simultaneidade. Percebi o romantismo poético de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu; ritmo de um convívio tribal logo disperso pela chegada do homem branco. A diáspora se insurge neste exato momento de troca subjetiva: nasce o Índio; neologismo recuperado pelo “homem civilizado” que irá se legitimar freneticamente no percurso da opressão histórica discutida pelo filme; porque o espelho se quebra na experiência traumática do encontro. Aquilo que explode na tela, mais do que uma relação contraditória, irreconciliável, é a morte de uma narrativa histórica convencional, linear; também, a morte da alteridade radical da linguagem; porque já não existe mais duelo entre a linguagem e o sentido. Percebi, então, o impulso afetivo no permanente deslocamento espacial, simbólico e geográfico que, a meu juízo, não dialogam apenas com um tempo isolado mas com experiência afetiva que é articulada no movimento desse tempo; e, nesse sentido, a total perda referencial do presente ou passado, do mental ou físico. O princípio da espacialidade é diferente; tanto para o lado de Carapiru, quanto para nós. Logo, o filme de Andrea Tonacci tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginário; fragmentos da consciência onírica e empírica do diretor, que pintam, cirurgicamente, através de imagens e sons, cacos de uma iconografia histórica que não conseguiu, ainda, superar essa mesma realidade desintegrada; e aceita, com isso, uma abordagem romântico-modernista; justificada por reproduzir o mito do “bom selvagem” como expressão caótica do índio; característica muito presente, inclusive, na literatura de Sérgio Buarque de Holanda.
Existe uma revisitação à memória na instantaneidade e onipresença dos acontecimentos sugerida no tempo em que o filme está sendo exibido; pela capacidade de recusar o real e de propor a esse mesmo real outro cenário, onde a imagem dos seres, das cores sobre a tela, se liberam na mixagem transfigurada do movimento; espécie de antídoto contra o mito de uma consciência que não inspira nenhuma resposta, mas a vertigem circular entre dois mundos supostamente irreconciliáveis. A ficção Serras da Desordem simula o desaparecimento do índio através de um modo fractal de dispersão incessante, pelo deslocamento infinito da consciência e da própria ordem das coisas; já o documentário Serras da Desordem, nos diz que o peculiar e o fractal são o esquema atual de nossa cultura, e, por isso, o caráter estruturalista – como modelo de um sistema de diferenças – já não funciona eficazmente como aparelho científico de classificação de uma performance midiática, ondulante, da angústia gerada pelo filme. Diante disso, a promiscuidade entre ficção e documentário, índio e homem branco “flutuam” em inúmeras ramificações interpretativas; porque a desordem é o caminho, a voz iracundia que se perde na serra, que nos toca afetivamente pelo sentimento estético do anti-relevo, da anti-continuidade, do anti-significado. Realidades afetivas que ressoam livremente no jogo poético e antropofágico do movimento.
A idéia de progresso discutida em Serras da Desordem não está na ferrovia ou na fisionomia arquitetônica das grandes metrópoles; ela se traduz pela incoerência marginal deste progresso na tentativa medíocre de civilizar o índio; além de expô-lo como mercadoria exótica nos corredores do poder. É como se, no lugar de efeitos especiais, de acontecimentos imprevisíveis, Carapiru se acomodasse como protagonista no jogo irracional do teatro exemplar de nossa representação; onde os níveis de consciência coletiva fossem inteiramente efeitos midiáticos, regidos pela obstinação superficial da especulação. A alteridade torna-se, com isso, além de melodramática, auto-reprodutiva, auto-destrutiva. Vemos, então, que o desaparecimento do índio não importa desde que ele se reproduza na vitalidade da imagem; seja do cinema ou da televisão. Quando tal impulso é admitido, reconhecemos nessa tentativa frustrada um mecanismo de fuga inconsciente; onde estaremos condenados a simulação técnica do desejo e da consciência de si.
A boa fotografia do filme não representa nada; ela capta essa não representatividade, a alteridade do que é estranho a si mesmo, o exotismo radical do objeto-índio-homem-branco. Colorida ou em preto branco, a fotografia é o nosso exorcismo. Quando a sociedade primitiva tira as suas máscaras e a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens. Tonacci executa um tipo de fotografia que nos aproxima da mosca, de seu olho facetado e de seu vôo em linha quebrada. Somos a própria mosca varejeira a espreitar, através do filme, um cadáver em decomposição; ao mesmo tempo que tentamos reconstruir, como na anamorfose, a partir de seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada, suas linhas de fratura, a forma secreta de nossa tragédia histórica.
Serras da Desordem não termina porque foge às dimensões da moldura e, por isso, continua no fluxo da memória e do tempo em busca não de uma resposta, mas do devir permanente contra uma historiografia que tenta, sem sucesso, nos conduzir na poesia inacabada de nossa existência.
Bibliografia
1.BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro. Editora José Olympio, 1971.
2.ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro. Record, 20ª Edição, 1986.
3.FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Circulo do Livro S.A, 1933.
4.LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

sábado, maio 31, 2008

O Expressionismo e a Máscara Trágica

Tentaremos, aqui, especular, resumidamente, sobre alguns tipos de “afinidade estilística” entre o filme Macbeth, de Orson Welles, e a estética expressionista; pensando numa articulação cuja densidade pictórica repousa no trágico; onde a forma das coisas ocupa, disciplinadamente, um tempo sombrio, delirante; e os medos que atormentam a alma humana; sempre na perspectiva do anômalo, do sofrimento e da morte. Rebelião interior do protagonista; espécie de apoteose do falso. Moldura de uma brutalidade insana, onde o místico pontua uma experiência sensivelmente gótica, demoníaca e cruel nas falas, gestos, luzes, na cenografia, na música...; introduzindo uma concepção arquetípica, alegórica de um poder despótico; sustentado ironicamente pelo ódio e pela vingança.
Shakespeare é “transcriado” na medida em que o texto, adaptado de sua obra, se compõe às imagens e sons; onde o teatro e a literatura dão lugar ao cinema sem desaparecerem por completo. Observamos, com isso, que não basta traduzir o sentido as palavras: é preciso recriar o texto, restituir sua estrutura original em “outra forma”. Esse movimento aliado à deformação e análogo aos sentimentos de Macbeth, se lança, na tela, sob a forma de pinceladas dramáticas, ordenadas por uma tensão existencial profunda, alucinada; que podemos aproximar da pintura “O Grito” (Skrik), do norueguês Edvard Munch; pela angústia levada ao paroxismo; tom que representa um mundo interior sempre desarmônico. Outro exemplo importante, seria o de refletirmos o político e a psicanálise como duas formas indissolúveis, talvez, no discurso de Welles. Embora o espelho seja anamórfico, a dimensão narcísica opera de modo sensível no inconsciente de Macbeth, na medida em tudo pertence a esfera da sensualidade, do prazer, dos impulsos; e tem, como destino, ser contrário da razão – algo subjugado ou reprimido de alguma maneira, na busca cega pela honra e pelo poder.
O lado místico do Filme explora uma fantasia humana obscura (a profecia das estranhas irmãs), além de contrastes em preto-e-branco de forma vigorosa e original; superando, inclusive, minhas dúvidas quanto ao diálogo com o pintor alemão Emil Nolde; pelo espírito solitário e individualista e pela crítica social da arte, além de toda uma poética traduzida em motivos retirados do cotiano, nos quais se observam o acento dramático e algumas obsessões temáticas, psicológicas; como, por exemplo, o sexo (no que toca ao “protesto” subtextual de Macbeth contra a ordem repressiva da sexualidade criadora: “Quem é aquele que não nasceu de uma mulher? É esse que devo temer e ninguém mais.”) e a morte (O assassinato de Banquo como desejo do crime supremo, porque o mesmo estabelece, nesse contexto, a ordem da sexualidade reprodutiva e, assim é, na sua pessoa, o gênero que preservará, segundo a estória, uma linhagem de reis; nesse sentido, os filhos de Banquo – “aqueles que herdarão o trono”, devem, também, ser mortos). Tal circularidade tormentosa, inconsciente, leva Macbeth ao conflito da ambivalência; eterna luta do Eros e o instinto destrutivo, ou de morte; viés filosófico e psicanalítico no sentido de uma coexistência entre pulsões antagônicas que se fundem; o sublime é o trágico, a verdade é a mentira, o amor é a morte, o nirvana é o purgatório, o concreto é o irreal. A pintura de Nolde, "A Última Ceia" (1909), com figuras deformadas, cores contrastantes e pinceladas vigorosas que rejeitam toda espécie de comedimento, traduzem um tipo de expressividade rude, interiorizada pelo protagonista no filme. Como vemos nesta passagem:
“São profundos os nossos temores em relação a Banquo. Em sua natureza real, reina aquilo que devemos temer. Muito ele ousa e junto com seu destemido espírito, ele tem uma sensatez que guia seu valor, fazendo-o agir em segurança. Não há nenhuma outra, exceto sua existência que eu temo e, diante dele, meu gênio é intimidado como dizem que acontecia com Marco Antônio diante de César. Mas que se despedace a estrutura das coisas e que pereçam o céu e a terra antes de comermos nossa refeição com medo e de dormirmos no tormento daqueles terríveis sonhos que nos agitam à noite. Melhor estar com os mortos que, para ganhar nossa paz, enviamos à paz eterna, do que nessa tortura de espírito, nesse repousar em insone êxtase (...)”*.

Macbeth tem visões que, ainda vagas e indistintas, mostram o absoluto que está por trás da realidade sensível. Tudo acontece nas sombras da noite, da névoa sinistra. Algo muito parecido, neste aspecto, com “O Gabinete do Dr. Caligari.; filme de Robert Wiene. A contradição profética do destino faz-nos absorver sensações de desconforto; composição visual desarmônica, flutuante do espírito e do estado das coisas.
Termino sob o argumento de que a arte expressionista, sobretudo o expressionismo alemão, sintetiza uma interpretação filosófica, artística, literária, psicanalítica da modernidade; como Kafka, Wilde, Joyce, Proust, Balzac e tantos outros que, espalhados pela Europa, refletiram a complexidade de um projeto industrial, tecnológico de um mundo enfermo pelo Capitalismo. E Orson Welles atualiza esse debate, sob alguns aspectos, no filme discutido. Logo, terei, seguramente, o desejo de aprofundar essas questões numa outra ocasião.
Notas

* Macbeth. Filme de Orson Welles, 1948.

Bibliografia

1. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

2. GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

3. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
Site pesquisado:

http://www.geocities.com/contracampo/expressionismoalemao.html

domingo, maio 04, 2008

O Melodrama da Alteridade

Posições sociais, ritos de classe, repressão racial e sexual nos anos 1950. Longe do Paraíso inspira o rigor formal do clássico narrativo orquestrado pelo melodrama; lugar comum na história do Cinema Norte-Americano; de Griffith, Douglas Sirk, a Todd Haynes, o sentimentalismo açucarado reafirma essa tradição numa linguagem teatral, especular e literária. Entretanto, se a diegese do filme inspira essa dinâmica, o léxico conotativo rompe violentamente com tal postura; exatamente por sublinhar posições de confronto. Espécie de sobreposição pictórica onde a percepção Renascentista se mistura com os movimentos de vanguarda; numa só tela. O choque permanente entre o decoro público, familiar, rígido, hedonista, racionalista, com escalas cromáticas (sólidas) que definem a representação psíquica, estética das personagens, e a suposta “libertação” dessas exigências no percurso da experiência transgressora, inconsciente, manifestada pelo desejo (sentimento abstrato), faz-nos admitir tal possibilidade. O figurativismo Renascentista (Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt) acompanha a estrutura narrativa e “imita” a realidade concreta; porém, o sintoma é o irracional, o sensual, o sonho, o falso; chegando ao ilógico no percurso de uma incompatibilidade lúdica (Miró). Logo, esses movimentos articulados conseguem provocar uma reflexão sobre aquilo que está para além do visível, além da superfície, além das aparências. A simulação permanente de uma burguesia moralmente falida consagra aquilo que o filme tenta discutir: uma civilização ocidental repressiva, dogmática, preconceituosa, submersa, onde pessoas como Julianne Moore (Cathy Whitaker), Dennis Quaid (Frank Whitaker) e Dennis Haysbert (Raymond Deagan) se encontram.
O jardineiro Raymond pontua a sensação de hostilidade e estranheza que veste o olhar das pessoas no momento em que se aproxima; porque o racismo não existe enquanto o Negro permanece negro. Começa a existir quando o negro torna-se diferente, isto é, ameaçadoramente próximo. É aí que desperta a veleidade de mantê-lo à distância. O fato de estar presente a uma vernissage, reduto de uma “elite intelectual” branca, gera o desconforto e a necessidade de divisão no espaço simbólico. Mesmo sensível, bem articulado, a elegância e sofisticação de Raymond não sobrevivem a curiosidade pálida daqueles que, alheios ao universo da arte, simulam uma preocupação banal com a presença dele naquele espaço. O Sr. Deagan torna-se, então, um protótipo do negro que, embora discriminado socialmente, já absorveu os valores do cotidiano burguês. A etnia e o lugar social que ele ocupa na divisão do trabalho não pesam na constituição psíquica do personagem; apenas o resgate humanista da solidariedade e de um amor não correspondido por uma mulher branca.
Provinciana, submissa ao modelo tradicional, Cathy herdou a responsabilidade de cuidar dos eventos sociais, da família e do marido exemplarmente, sob os olhos atentos dos vizinhos fofoqueiros e das leitoras do Weekly Gazette, jornal da sociedade de Conneticut. Recolhida ao estilo idealizado pelos “bons costumes”, a falta de personalidade da “Sra. Whitaker”, nos mostra, inclusive, uma certa “discrição” no que se refere a atitude dela própria enquanto “mulher cidadã”; seu apoio a ANAPC (tipo de associação que luta pelos direitos dos negros) reforça um assistencialismo demagógico que não esconde a segregação racial naquela cidade. Embora a posição de Cathy diante do mundo seja de “quase” total recato, uma doçura infantil nos arrebata. Suponho que ela não lera “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir – publicado em 1949.

Figura central na trama, o executivo Frank Whitaker nos conduz pelo seu mundo tal como a experiência de Proust, Oscar Wilde e tantos outros. Energia dolorosa, marca vital a que chamamos de amor; sentimento íntimo, porém “incompatível” no filme. Amar outro homem ao invés da esposa gera desarmonia psíquica em Frank, motivada por um estágio repressivo do senso comum; que dá nome às coisas e a forma como se devem utilizá-las. O fato de ser casado, ter dois filhos, uma mulher solícita, além de uma imagem crível que deve ser mantida com todo o esforço, potencializa essa questão. No momento em que Cathy e Frank decidem juntos procurar um médico, estão obedecendo exatamente ao estímulo da incoerência padronizada do universo da diferença sexual. Logo, até o desejo precisa ser administrado, interpretado esquematicamente, mecanicamente, com o mesmo rigor gerencial do lar ou da empresa. Todavia, ao longo do filme, vemos que o predomínio já não é mais o da diferença ou indiferenciação mas o da incompreensibilidade eterna. A pouca luminosidade no “lar” do Sr. e da Sra. Magnatech traduz essa confusão dos gêneros; duelo entre a máscara e o vazio. Entretanto, se Frank, no início, provara o gosto de fel em se negar sob os efeitos da consciência moral e da obstinação terapêutica, no final, a sua decisão, ao contrário, assume e reconstrói a forma deste “Outro” eu. Daí nasce todo o jogo, todo o desafio, toda a paixão, toda a sedução no filme: do que nos é completamente estranho e que, todavia, tem poder sobre nós: o Outro.
Longe do Paraíso é um filme magnífico.
Bibliografia:
1.BALTAR, Mariana. Moral Deslizante: releituras da matriz melodramática em três movimentos. Sirk, Fassbinder e Haynes. Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho “Fotografia, cinema e video”, do XV Encontro da Compós, na Unesp, Bauru, SP, em junho de 2006 (mimeo).
2. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução: Sergio Milliet. São Paulo, DIFEL, 3ª edição, 1975.
3.DEMPSEY, Amy. Styles, schools and movements. Tradução: Carlos Eugêncio Marcondes Moura. São Paulo. Cosac & Naif, 2003.
4. WILDE, Oscar. A tragedia de minha vida. Tradução revista por Zuleide Faria de Melo. Rio de Janeiro : Biblioteca Universal Popular, 1964.
5.PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
6.SINGER, Bem. Melodrama and modernity. Early Sensational Cinema and Its contexts. New York, Columbia University Press, 2001.
7..XAVIER, Ismail. D.W. Griffith: O Nascimento de um Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984.

sexta-feira, abril 04, 2008

*Apontamento - Parte I: Intelectual. Orgânico ou Universal?

* Este artigo não contém as fontes de citação; a segunda etapa será postada em breve.
Rever alguns equívocos sobre o problema do intelectual na contemporaneidade, sua função histórica e pública, consagra, neste artigo, o meu interesse formal sobre este assunto – que teve uma certa "visibilidade", infelizmente, apenas, nos Centros Culturais, nas Universidades e nos canais de televisão por assinatura no ano de 2005; em razão, acredito, dos escândalos em que a cúpula do Governo estava envolvida e de um suposto "golpismo" que se insurgira contra o Presidente Lula naquela ocasião. Episódio que motivou uma série de conferências nas grandes cidades do país, onde a figura do intelectual era colocada em perspectiva; talvez, pela invisibilidade pública e pela falta de um "engajamento" ainda duvidoso deste personagem. Além de uma tentativa de recuperar no simbólico o papel histórico daqueles que seriam, ainda, os grandes "emancipadores" da consciência popular; tanto por uma suposta "virtude clerical" quanto pela organização e liderança em determinado grupo social ou político (posições que veremos ao longo deste apontamento). O fato é que, dois anos depois, a falta de interesse, injustificável, pelo assunto, negligencia, de forma criminosa, o debate aberto e democrático, assumindo uma condição unilateral e exclusivista, preconceituosa e, antes de tudo, classista. As interpretações gravitam aleatoriamente num campo puramente especulativo, antifilosófico, sem uma direção objetiva e concreta. Teórica, mas concentrada nas publicações inacessíveis ao grande público, além de um romantismo retórico que satisfaz, mesmo que parcialmente, as mais variadas intenções de forma equivocada. Porque motivo? Eu diria que, esclarecer o assunto de maneira ampla e irrestrita nos faria, segundo Spinoza, "deduzir corretamente as diferenças, concordâncias e oposições das coisas". E isso seria o mesmo que "balançar" uma espécie de "decoro" hegemônico, cuja finalidade inconsciente é a submissão de classe, além de uma série de pressupostos e interesses que lançam quaisquer discussões sobre o papel intelectual na obscuridade mórbida do conformismo e da incerteza. Diante disso, concentro-me nesta reflexão pela necessidade romper com uma ética acadêmica romantizada pelo idealismo burguês, para aderir, então, a uma nova experiência mais reveladora do ponto de vista cientifico; embora este texto seja anticientifico.
Mesmo verificando na antiguidade a presença de Tales de Mileto, Platão, Aristóteles e tantos outros que tiveram as suas devidas importâncias na vida pública e, também, na legislação em suas cidades, entendemos, todavia, o relevo das Idades Moderna e Contemporânea como recorte histórico mais apropriado para avaliarmos, com clareza, o papel dos intelectuais. A justificativa desta idéia está transição do Feudalismo para o Capitalismo; e tem como principais marcos a formação dos Estados nacionais modernos, as capitanias hereditárias, o renascimento cultural, a expansão marítima, a descoberta de novos territórios, as reformas e contra-reformas cristãs, o colonialismo, o surgimento das monarquias absolutistas, o Iluminismo e a independência dos Estados Unidos. O Mundo Moderno representou de forma explosiva as contradições entre o Capital e o Trabalho, assim como a contemporaneidade representa o vazio utópico e colérico desta bipolaridade. A partir da Revolução Francesa até os dias de hoje, dos exemplos que ficaram anacronicamente registrados, pode-se destacar a Declaração dos Direitos do Cidadão, com o estabelecimento de que a propriedade privada é "inviolável" e "sagrada", e o despertar da consciência da humanidade, de que os recursos naturais da Terra não são inesgotáveis. Ainda que seja menos pessimista do que Baudrillard, acredito que estejamos no lodo da repetição de fórmulas ultrapassadas. Um estado de crise sem precedentes na política, cultura, valores morais, estética, noções de espaço e tempo, relações entre o público e o privado, e de paixões eternamente revisadas; sem diminuir o peso da incoerência do Modo de Produção Capitalista numa reaplicação das contradições superadas. O Liberalismo Clássico, o Fordismo, a Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929, o Keynesianismo, a Crise Mundial do Petróleo, o Toyotismo, o Consenso de Washingnton, e, finalmente, a Barbárie (o atual estado das coisas). "O que fazer após a orgia?" Outubro de 1917 se mistura ao meu inconsciente de uma forma transitória porque a Revolução Russa foi e continua sendo refletida, para mim, não como a "Revolução Perdida", ou algo superado, mas o caminho preliminar, doloroso, em busca de uma liberdade incondicional em todas as esferas; em outros continentes. Imprevisto dentro da razão dominadora. O totalitarismo soviético não feriu o materialismo histórico; o seu vigor continuará, sempre, dentro de nós. Porque somos nós a História. Manifestamos esta perspectiva da ação concreta sobre necessidade fundamental em mudar a realidade: Dialeticamente! E o intelectual nasce do resultado contraditório e antiidealista de uma proposição racional e militante dentro do fenômeno histórico. Creio que as Idades Moderna e Contemporânea "oficializaram" tal postura critica e ativa do debate público sobre um mundo cada vez mais complexo. Logo, Antropocentrismo, Humanismo, a "separação" entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), além do Iluminismo, se aproximam, neste conjunto, a uma das metades na contextualização orbicular que observarei a seguir: a do Intelectual Tradicional. E, ao mesmo tempo, contrapondo-se a esta primeira idéia, verei uma outra categoria que rompe filosoficamente ao idealismo hegemônico e ao caráter "autônomo" desta linhagem: a do Intelectual Orgânico.
A proposição teórica que aponta para essas duas categorias, se encontra, também, nos livros "La Trahison des clercs" (A Traição dos Clérigos) de Julien Benda; e "Cadernos do Cárcere, volume 2" de Antonio Gramsci. Tal receituário nos permitirá avaliar as duas formas de interpretação que, mesmo antagônicas, se relacionam contraditoriamente.

Intelectuais Tradicionais
Uma das interpretações sobre a genealogia do termo "intelectual" exerce como ponto de partida 13 de janeiro de 1898, quando o escritor francês Émile Zola redigiu o emblemático manifesto "J’accuse", publicado no jornal republicano "L’aurore"; pedindo a revisão da sentença que acusara o Capitão Alfred Dreyfuss – oficial de origem judaica – de espionagem e traição. No dia seguinte, o mesmo jornal, publicara um abaixo assinado apoiando o artigo de Zola. Personagens como Anatole France e Marcel Proust contribuíram neste movimento de opinião pública. A questão central deste fato nos remete, aqui, a algo inédito: Émile Zola exercendo um outro papel histórico; saindo do lugar que lhe cabia na divisão social do trabalho e intervindo num assunto de interesse coletivo. O romancista (critério sociológico) transformou-se no intelectual (critério político) quando entrou no espaço público para defender Dreyfuss. Sérgio Paulo Rouanet nos diz que:

"A importância deste episódio define Zola como precursor, segundo alguns teóricos, do repertório universalista do iluminismo e da tradição republicana francesa; daqueles que nos anos 1930 protestaram contra o fascismo, no pós-guerra se opuseram à bomba atômica e ao colonialismo, nos anos 1960 e 70 condenaram a guerra do Vietnã e instalaram o tribunal Russel, e nos primeiros anos do nosso século se opuseram a agressão algo-americana no Iraque".

Tal afirmação de Rouanet, que ilustra o nosso raciocínio, representa uma defesa formal do repertório tradicional-universalista; compatível, segundo ele, "ao ideal da construção de uma civilização humana"; opondo-se a um tipo de relativismo canceroso e unilateral; além de arcaico. Fanatismos religiosos, nacionalismos extremados, etc... . O intelectual tradicional, segundo o diplomata, ao contrário, exerceria a uma atividade central e independente; fora das relações de poder. Defensor desta mesma opinião, a falta compromisso com a verdade, segundo Julien Benda, "estimulada pelas paixões políticas e ideológicas", trairia o vínculo racionalista proposto neste sentimento de universalidade. O filósofo cita, inclusive, Maurice Barres e Charles Maurras; artífices da Action française, do anti-semitismo e da direita monarquista francesa; cobrando uma superioridade moral até então esquecida por eles. Todavia, de que maneira este tipo de racionalismo pautado no repertório universalista do iluminismo e na tradição republicana francesa não seria, também, uma forma de particularismo? O intelectual significaria uma entidade acima do bem e do mal? A luta de classes se tornaria uma questão puramente metafísica? Com que neutralidade as contradições do fenômeno histórico contemporâneo seriam observadas? Tudo seria levado a potência abstrata em nome de uma vocação moral não laica? Penso que não deva haver consenso ideológico sobre Razão, Justiça, Liberdade e Felicidade – a universalidade sugerida pelo Catolicismo Anglo-saxão, pelo "Neo-pentecostalismo", pelo Islamismo e, também, pela Filosofia Metafísica que, embora muito sedutora, acaba se esgotando nela mesma. Porque a Filosofia Metafísica não pode, ao meu ver, inspirar uma ordem absoluta dos fenômenos utilizando "uma razão abstrata" sem reconhecer que esta mesma razão seja dialética; ignorando, assim, a materialidade do objeto. Hegel bem que tentou, mas se esqueceu das relações de produção e dos processos produtivos referidos por Marx. A Metafísica é, portanto, a antítese da Dialética. Logo, os intelectuais universalistas são filhos de um humanismo metafísico individualista cujo reconhecimento se opõe ao relativismo dos fenômenos históricos, culturais, políticos, etc... . Ou seja, universalizar para particularizar. O verbo é ideológico e, por isso, segundo Baktin:

"o pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento".

Diante disso, a matriz universalista é o câncer hiper-realista de um purismo filosófico que despreza as relações sociais em que a própria Filosofia está inserida. Pensar um país sem gravata, eis o nosso objetivo; porque a chantagem universalista é justamente uma cúria sacerdotal que debocha daqueles que pretendem mudar a sua comunidade ou região através de um pensamento orgânico, que atenda as expectativas de determinado grupo social. Percebo que exista um etnocentrismo muito forte nessa estória; pautado, inclusive, no racionalismo cartesiano e na filosofia alemã. Rouanet é um homem inteligentíssimo, mas não me atrai com a sua "democracia cosmopolita". Tal paradigma se apresenta equivocado aos meus olhos. Somos bárbaros, não somos civilizados. O mundo moderno ainda não amadureceu psicologicamente na mesma velocidade do tecnológico. "Ave Marcuse".Continuamos gravitando em torno da ficção capitalista, neoliberal. Logo, pensar numa superioridade ou virtude intelectual tendo como princípio a linhagem universalista é conversa fiada. Não existe purismo ou superioridade mística totalizante. O amor é absoluto? A verdade é absoluta? A liberdade é absoluta? Decisivamente não! Se o fossem, já estaríamos num estágio desconhecido; para além do Comunismo, de transcendência. Portanto, e para concluir, a tese universalista está, ao meu ver, superada pela história.

terça-feira, julho 31, 2007

Para sempre Antonioni

Michelangelo Antonioni me remete “A Noite”; talvez porque este filme traduza (para mim!) com sensatez e lirismo uma modernidade silenciada pelo “progresso”, além de uma burguesia urbana moralmente falida e incomunicável. O Marxismo “duvidoso” do Cineasta italiano não me preocupa; como, também, não me preocupa o “Socialismo Cristão” de Rosselini. Acredito que a estética fria de Antonioni influenciou diretamente alguns diretores do Cinema Novo como Luiz Sérgio Person (antes de se render a pornochanchada) e Paulo César Sarraceni. “São Paulo S/A” e “O Desafio” são dois filmes que me permitem, respectivamente, criar uma espécie de “intertextualidade” discursiva. A questão do universo psicológico de classe é muito evidente e circular nas obras citadas. Waler Hugo Khouri, cineasta paulista, embora metafísico demais, se aproximou, também, de Antonioni em alguns de seus filmes. “Noite Vazia” seria um deles.

O Neo-Realismo de Antonioni marcou, junto com Visconti, De Sica, Ettore Escola e Rosselini (este seria o maestro!), um painel histórico e estético, cujo realismo social respondeu criticamente ao Fascismo, e de como a Itália se apresentava no pós-guerra. Estou seguro de que Michelangelo Antonioni continuará, mesmo depois de sua morte, falando através de sua arte e, por muito tempo, para as gerações futuras.

segunda-feira, julho 30, 2007

Para sempre Bergman

Não estou de luto. Pelo contrário, estou realmente seguro de que, Ingmar Bergman, venceu a morte pela obra iluminada que realizou. Importante para ele foi e será a vida que atravessa o espelho para uma outra dimensão especular, imagética, pictórica, mas também dramática psicologicamente. O cineasta Sueco que percebeu no inconsciente social e familiar o registro ideal da natureza humana nos deixa hoje; da vida para a história.

domingo, julho 29, 2007

A Cultura Brasileira como signo do Caos

Tentarei já no resumo que escrevo, formatar algumas preocupações que necessitem de uma discussão clara e objetiva sobre o resultado trágico de nossa tentativa de assassinar a Cultura Brasileira* pelo desprezo, pela incompetência e pela falta de uma (!) política pública dirigida ao desenvolvimento cultural do país. Devo dizer, entretanto, que a Cultura Brasileira não está morta, ainda; felizmente, porque, talvez, “neste mundo de aparências, vai ficar na eternidade, com seus livros, com seus quadros, intacto, suspenso no ar!” (Manoel Bandeira); mas o que se resolve nas relações da superestrutura é o total descaso com a produção cientifica, artística e intelectual de maneira bem ampla. Ao que me consta, nem o Executivo e nem o Ministério da Cultura se entenderam na preocupação maior e elementar em desfazer o nó da mediocridade política e apresentar uma solução formal e definitiva para a Greve que atinge os mais diversos setores e meios de difusão cultural (falo da situação do Rio de Janeiro); o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), o Paço Imperial, o Museu Nacional de Belas Artes estão de luto; as faixas pretas que “vestem”, parcialmente, suas fachadas, traduzem a indignação dos trabalhadores, que já não admitem tanta indiferença e descaso. A greve é legítima porque é uma reivindicação de um grupo social (servidores federais) que está sendo usurpado de seus direitos. Ao mesmo tempo, a Sociedade Civil “organizada” e a “desorganizada” aplaudem os “nossos” atletas no Pan-americano. “Sociologia de Maracanã”, como bem disse o professor Francisco Carlos Teixeira num debate sobre o assunto. Evento cujo principal objetivo é a exploração comercial, a alienação da finalidade esportiva, o chauvinismo e o deslocamento das contradições históricas das três Américas. Contra o evento, tivemos, apenas, manifestações discretas, “abafadas” pela imprensa burguesa. Gostaria, inclusive, de refletir sobre minhas posições num outro artigo mais específico sobre este dilema; que é o da “Sociedade do Consenso”. Logo, deixo tal compromisso para depois.
A legitimidade da paralisia e da asfixia – a greve nos órgãos de fomento cultural de maneira geral – (neste caso!) já não surte mais o efeito prático e reanimador para a crise permanente em que vivemos. Tal afirmação se justifica, também, pela falta de participação política e de mobilização da Sociedade como um todo. Isto se verifica pela falta de discussão e de visibilidade sobre o assunto. Se a finalidade jornalística é, dentre outras coisas, a de promover um debate público e democrático sobre aquilo que é de interesse coletivo (trabalho com está lógica de forma proposital!), todas as reivindicações de classe e os movimentos sociais estarão condenados ao esquecimento; quando não forem criminalizados injustamente; porque, os grandes complexos – privados – de informação contribuem para uma certa estabilidade social, além da hegemonia política de grupos econômicos ligados ao mercado financeiro e a indústria. A cultura é tratada como objeto de consumação de massa no subtexto dos cadernos especializados, para uma elite pseudoculta e indiferente. O kitsch é a tendência, a redução arbitrária da cultura ao signo da obsolescência e do caos.
Mas a crise na estrutura é a crise na superestrutura. Existe uma relação especular traduzida na velha experiência paternalista do Estado brasileiro; a submissão popular alimentada pelo inconsciente místico das massas alienadas e uma burguesia que só consegue olhar para o próprio umbigo. Porque a crise na cultura, a crise na aviação civil – fruto de um conflito permanente e hegemônico entre a Infraero (que está subordinada ao Ministério da Defesa), o Comando da Aeronáutica e as empresas de transporte aéreo – a crise na educação, é a crise na superestrutura; ao mesmo tempo, as relações – que formam a estrutura social – econômica, ideológica e jurídico-político de produção estão comprometidas nesse jogo. Difícil falar só de um aspecto quando a engrenagem é extremamente complexa e múltipla. O Brasil está em crise; resultado de um modelo político e econômico já superado e que não traduz as expectativas de nossa miséria; que antes de ser cultural é moral. É preciso, imediatamente, tal como afirmou Carlos Drummond Andrade em seu poema Hino Nacional, “redescobrir o Brasil! O Brasil está dormindo, coitado. Precisamos colonizar o Brasil”.
*Conjunto de práticas e representações que se configuram como saber na Música, na Literatura, nas Artes, no Cinema, no Teatro, na Dança, etc... e, também, no que se refere a Etnografia e a Antropologia. O binômio "Cultura Brasileira" funciona como resultado "Antropofágico" (no sentido "Oswaldiano"); tal posição interpretativa é a que empresto ao termo no contexto do artigo.

terça-feira, setembro 05, 2006

A face cor de rosa da Nouvelle Vague é Agnès Varda


Dispensando qualquer formalismo na apresentação, pretendo, apenas, registrar o papel daquela que, junto com Godard, Truffaut, Chabrol e outros cineastas, participou de um dos movimentos cinematográficos mais significativos nos anos 1960. Agnès Varda deu um toque feminino a Nouvelle Vague e, indiscutivelmente, contribuiu para cine-documentário internacional e para a fotografia. “Os Panteras Negras” (Black Panthers), um de seus filmes que tive o privilégio de assistir, ontem, representa uma radiografia sensível do movimento negro em sua organização político-cultural contra a opressão racial nos Eua. País cuja mentalidade reacionária e intolerante ocupa até os dias de hoje o imaginário messiânico da classe política. 1968, ano em que o filme foi lançado, representa um período de grandes revoluções políticas e culturais; inclusive na França, onde cresceu Varda. Não podemos esquecer da revolução estudantil de Nanterre em maio de 1968; e nem do AI-5 aqui no Brasil, em dezembro do mesmo ano; que silenciou as cabeças pensantes de nosso país a ferro e fogo. Concluindo, o filme é atualíssimo, chamando, inclusive, a responsabilidade da sociedade civil e do movimento negro nacional e internacional na luta pelos seus direitos em todas as esferas.

O que é o PSOL?

Esquerdismo, doença infantil do Comunismo! Tal como profetizou Lênin em seu texto escrito em de 1920, a expressão sintetiza, aqui, o gosto amargo e aventureiro da esquerda pseudo-revolucionária do Brasil. Tal histerismo ilustra e antecipa o processo eleitoral em curso. E olhar-se no espelho significa, primeiro, refletir dialeticamente, hoje, sobre a vanguarda da mediocridade política e personalista de uma esquerda em colapso que traiu os princípios revolucionários, se coadunando ao jogo político institucional burguês em nome de um romantismo estéril e de um moralismo sem grandeza heróica. O clamor por uma democracia socialista na América Latina não tem mais o sentido racional, concreto e revolucionário de Martí, Che, Mariategui. Apenas um ruído insólido contra as formas de dominação que oprimem o homem na contemporaneidade; uma ressonância que admite, inclusive, a possibilidade de um "Estado de Bem Estar Social" Keynesiano, ultrapassado, mentiroso, impraticável, "social-democrata", no lugar de uma nova utopia revolucionária de emacipação dos povos em nosso continente.


Mas o que significa o Partido Socialismo e Liberdade e sua cadidata? Veremos.


É um Trotskismo demagógico que se instala na possibilidade de construção de um Estado Socialista através de uma forma de luta político-institucional. O que é um equívoco. Pensar em Socialismo por meio de uma democracia representativa, vertical e burguesa é um erro. Heloisa Helena critica os banqueiros, a burguesia industrial, os latifundiários, mas será a primeira a costurar alianças e a fazer concessões de classe se chegar ao Palácio do Planalto. Seu discurso pragmático seduzirá muita gente até as eleições. Principalmente aqueles que ficaram decepcionados com Lula; que representa uma metáfora, uma alegoria carnavalesca do operariado brasileiro em crise. Uma mistura de oportunismo, romantismo e radicalismo; fruto de uma esquerda (internacional latino-americana) que, ainda, não conseguiu superar-se teoricamente e dialeticamente após a queda do muro de Berlim e com o fim da União Soviética. Percebo o Brasil em transe. Creio que o discurso democrático anglo-saxão a Tocqueville, hoje, tenha nos deixado paralisados; pela mentira teatral da utopia realizada da privatização, da ciência e da tecnologia, do mercado, de um avanço em direção ao abismo. Dizer que Heloísa Helena é marxista é permissível, assim como dizer que através do voto conseguiremos chegar ao Socialismo. Um outro erro é querer imputá-la um caráter social-democrata, como alguns pensam de Lula. O Brasil nunca foi social-democrata, mas um país neoliberal disfarçado de social-liberal. A esquerda brasileira entrou neste jogo faz muito tempo e ainda não percebeu. Aí me fazem uma coligação PSOL (grupo de dissidentes do PT), PCB e PSTU (outro grupo de dissidentes do PT) e gritam como legítimos representantes da “esquerda revolucionária no Brasil”. Isto é uma mentira. Posso ter respeito por esses partidos, mas não vou me coadunar ao tal “projeto revolucionário” que eles dizem ter para País.
Somos escravos do Positivismo Republicano à Comte. Vivemos, ainda, um Brasil oligárquico, autoritário e místico; que se sustenta, objetivamente, através de uma Pseudo-Democracia; burguesa, etnocêntrica, vertical e escravocrata. A ideologia hegemônica é a racionalidade tecnológica internacional desenvolvimentista. O modelo Neoliberal conseguiu, infelizmente, corroer a nossa subjetividade, de tal maneira, que ficamos imobilizados. Qual o pensamento síntese da dialética esquerda-direita no Brasil? As duas, no mesmo barco, celebram a nossa marginalidade de forma anacrônica, porque não conseguiram superar teoricamente o dilema histórico do subdesenvolvimento. E aí se concentram na falácia demagógica e reconciliadora do Capital com o Trabalho; que é a Social-Democracia, ou o Social-Liberalismo; duas classificações que são parentes.

O Político está colonizado pelo Econômico; os intelectuais da esquerda desviaram-se do espaço público como arena de lutas políticas e se "encastelaram", definitivamente, nas Universidades; ou através dos livros ou pela televisão; mas sempre de uma forma impessoal. Quando digo isto me refiro aos "intelectuais orgânicos" da USP; centro estratégico da intelectualidade da chamada esquerda brasileira.

Só nos resta, apenas, o jogo circense e clientelista do populismo à brasileira. Discursos inflamados, fórmulas fáceis de manipulação, soluções idealistas. E aí, ironicamente, neste aspecto, temos várias opções. O voto é a adesão concreta a este modelo institucional burguês; que, só será transformado estruturalmente por uma Revolução Socialista. Como? Vamos discutir.

Todas as alternativas viáveis no campo da institucionalidade são uma fraude. Por isso, acho um pouco exagerado apostar em Heloísa Helena; que nos serviria muito mais como militante de base nas universidades, doutrinando politicamente seus alunos, do que se aventurando numa luta por um projeto de poder individual e não coletivo. O Socialismo de Heloísa Helena não veio de Marx; mas de Charles Fourier, Saint Simon e Robert Owen.

Agora peguem os três e misturem com o pensamento de Trostky, que vocês terão o discurso da candidata do PSOL.

sábado, setembro 02, 2006

No rumo da Prosa!

Sem título


Alimenta-se da tua quimera, macaco gordo putrefato.
A balança atinge a tua mão já no início da tortura.
Vive enjaulado, gosto amargo da procura incerta.
Sabes bem que aquela mulher não te ama!?
Nem a tu e nem a mim, ò príncipe guerreiro.
Lutas infundadas te assombram no gosto amargo da solidão.
Justa medida da vida, bandida, morta e vilã.
Mas o que fazer se a porta está sempre fechada?
O que fazer se os olhos insistem em não enxergar aquilo que nunca foi?
Graças à ordem sobrenatural, herdas o vício macabro da disciplina.
Graças à fonte salobra da mentira, falas aquilo que não sabes.
Deus, ès o gosto de fel derramado sobre nós e vós que ainda sonhas.
Justo é aquele que não sonha e nem vive!
Porque a vida nada mais é do que o sopro amargo da esperança.


Sem título

Bate a porta da alma aflita o velho lobo sofista.
Verbo ácido da loucura que profana os ouvidos dos ouvintes.
Raspas de genocídio mental são engolidas por aqueles que latem.
A fome degenera a incompreensão operística da barbárie.
Não Penso, logo não existo!
Ave palavra!
Verbo doce-amargo.
Flecha de infinitas pontas.
Labirinto do sofisma.
Buraco negro da incompreensão.
O homem? O que és tu afinal que gritas dia e noite reivindicando a tua luta?
Talvez ninguém!
Porque só ninguém ousaria mergulhar no lago gelado e obscuro da razão.


Sem título

Gestos explosivos somam-se a ternura da mãe e sua filha.
Filha da mãe!
Roupas rasgadas no quintal de madrugada .
Serestas do povo na rua.
À lua se confessa admitindo culpa.
Ao anjo uma promessa.
À igreja uma reza.
Do que interessa todo esse o choro?
A família sua tortura acolhe.

domingo, agosto 06, 2006

Intolerância!



Mulher palestina sendo agredida por judeus extremistas na cidade de Hebron; um caso explícito de alteridade hostil.

sábado, agosto 05, 2006

Sob o signo da Guerra: ilações sobre o conflito Líbano x Israel

Oriente Médio

O genocídio por conta da intervenção israelense no Líbano é a resposta totalitária que reivindica o estatuto de matriz colonial estadunidense por parte de Israel no Oriente médio. A morte de civis inocentes faz parte de um projeto eugênico muito claro de extermínio e de expansão belicosa articulada pelos Eua e pela Inglaterra, cuja legitimidade está sendo, radicalmente, socializada pela imprensa monopolista internacional. Tal discurso, muito recorrente, ilustra, no campo da geopolítica e da ideologia, uma idéia de democracia e de terror que, não obstante, podem ser administradas, aqui, com pertencentes a um mesmo campo semântico; onde o conceito "Terrorismo de Estado" só é devidamente ou indevidamente usado pelas partes que lhe convém; salvaguardando, com isso, os seus interesses. Destruir pontes, estradas, viadutos, hospitais se torna, portanto, uma convenção, sem relevância alguma; tal como a morte de civis inocentes. A nossa reflexão consagra, entre outras coisas, a indiferença dos organismos internacionais e, sobretudo, o da Organização das Nações Unidas; esta, inclusive, de forma explícita permanece operando, historicamente, como filial anglo-saxã no mérito das Relações Internacionais; principalmente do ponto de vista ideológico; organização criada e pensada a partir da cultura e dos objetivos de Inglaterra e Eua. A legitimidade da Onu nunca transcendeu ao domínio imperial euro-americano; que é, inclusive antidemocrático e, repito, imperialista; tudo pela disputa do petróleo e o controle efetivo da energia global, diga-se.




América Latina

Ingenuidade pensar que o conflito é apenas regional. O preço do petróleo tem oscilado aqui no Brasil; país cuja auto-suficiência é conduzida pelo mercado externo. Se petróleo é nosso, o mercado é algo, intangível, incognoscível por conta de uma política neoliberal que inibe as ações do estado e flexibiliza o câmbio. O nosso país pode sofrer um impacto muito maior se a Síria e o Irã (quarto maior exportador de petróleo do mundo) entrarem nessa guerra. A Petrobrás em sua aspiração subimperial, explora os recursos minerais dos países periféricos. Se em Bolívia Evo Morales nacionalizou os hidrocarbonetos, o Equador ainda sofre nas mãos da estatal brasileira que, continua ferindo, quase que integramente, com suas ações, o meio ambiente e os interesses do povo equatoriano. É Importante que o governo Brasileiro contribua por uma integração política, econômica e cultural na América Latina; fortalecendo o Mercosul e encerrando definitivamente qualquer tipo de Tratado de Livre Comércio com Israel; tal cooperação seria um ataque simbólico aos povos árabe, palestino, libanês, iraquiano; além de um apoio informal às ações terroristas do estado sionista.




O meu apoio a todos os movimentos resistência na América Latina e no Oriente Médio contra o imperialismo euro-americano.

quarta-feira, julho 12, 2006

História e Cinema: Questões Metodológicas

Apresentação

Não se pode começar sem deixar claro o que propomos com este trabalho. Vale dizer, em primeiro lugar, que é um texto que discute o Cinema como objeto de investigação no campo das ciências humanas; em especial na área de História. Nossa preocupação objetiva será tentar apontar caminhos, redefinir e confrontar horizontes sobre o processo de apreensão e análise da arte cinematográfica sugerindo um diálogo desta mesma arte com a História. Tal abordagem se apresenta de forma prosaica, leve, mas necessária, porque toca na responsabilidade do pesquisador em examinar qualquer tipo de formalidade analítica preconcebida.
Começamos refletindo Marc Ferro1 (que nos serve como “edifício teórico”) e suas ponderações específicas: dilemas sobre as apropriações e reformulações do discurso cinematográfico pelo Estado; a questão da ideologia como mola propulsora e difusora de uma visão social que se diz predominante. O texto (o dogmatismo) e a imagem (o lúdico) como elementos da narrativa cinematográfica; as contradições necessárias que enquadram esses dois elementos como eixos de uma avaliação histórica e, nesse conjunto, discutir a importância da incorporação de outras disciplinas como a Filologia e a Semiologia numa perspectiva interdisciplinar. O conceito de “ciência operatória” (que interpretamos como pensamento síntese) dada a História pelo autor será reavaliada, também, nesse contexto.
Num outro momento verificamos atentamente alguns trabalhos de pesquisa situados entre 1993 e 2003; recorte orientado por se ajustar ao tema proposto (cinema e história); tentativa em confrontar interpretações e sublinhar quais foram eixos de discussão absorvidos em cada tema, e o que poderia ser aprofundado ou não. Este procedimento se abre como fundamental em nosso trabalho porque dialético, restituindo um caráter mais ensaístico e preliminar de reflexão da história e do cinema; meditação indispensável para poder seguir em frente, para esclarecer as próprias reais necessidades de novas idéias, de novas formas de investigação acadêmica.
O terceiro e último capítulo de nosso trabalho é uma leitura síntese do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha. Leitura-desfecho que se trata de um processo; reeducação lingüística daquilo que foi discutido ao longo do trabalho; da aplicação cirúrgica, operatória de Ferro ao experimentalismo informal dos trabalhos absorvidos. O objetivo final desta monografia é trabalhar com a hipótese de uma avaliação dialético estrutural da película-fonte-histórica mediada pela estética; justificada pelas conexões estilísticas da literatura de Cervantes no filme do cineasta baiano; e contribuir para que tais concepções e teorias, representativas do conhecimento científico em uma dada época histórica, se decaírem enquanto ciência em períodos posteriores, continuarem, válidas e admissíveis, a existir, não mais no domínio da ciência, mas no domínio da arte e da imagicidade; mostrando que os caminhos da história são todos os caminhos.

- História e Cinema: Possibilidades Metodológicas em Marc Ferro
A questão que norteia as discussões sobre que tipo de opção metodológica específica adotar quando o assunto é história já é preocupante sob o ponto de vista semântico (que fontes efetivamente atenderão o objeto estudado e em que conjuntura ele está inserido; e como se dá esta articulação quando o enfrentamento é a contemporaneidade em sua problemática); ainda mais se acrescentarmos outras fontes que se diferenciem completamente dos códigos tradicionais da historiografia convencional como, por exemplo, o Cinema. Experiência que interfere no fenômeno histórico no campo audiovisual desconstruindo e construindo metanarrativas sucessivamente (se pensarmos no surrealismo de Buñuel ou no neo-barroquismo de Glauber). O documento telecinado aparece como registro transgressor a uma fidelidade quase que dogmática atribuída ao texto escrito; “texto para ser visto” e não mais lido; para ser explorado de outra maneira pela carga de subjetividade que ele evoca. A relação com o passado, sob esta perspectiva, revela-se apenas, por registros audiovisuais nas suas mais diversas ramificações: cinematecas, televisões, coleções privadas, etc... . O escrito passa a dividir sua hegemonia com o filmado; que antes não se constituía como documento, mas como “antidocumento” porque lhe cabia uma outra interpretação incipiente que corrompia os domínios do inteligível e por isso era considerado subalterno; não pela profusão de significados, mas pelo caráter lúdico, dispersivo que suas imagens até hoje ainda evocam.
Pensar a imagem como texto e o texto como imagem. Como os dois se relacionam no campo da investigação histórica? O Cinema se insere neste contexto com o mesmo estatuto de fonte escrita? Quais as implicações metodológicas que podemos observar e aplicar quando pensamos em uma análise mais diversificada do fenômeno histórico através de recursos audiovisuais? Marc Ferro nos ajuda pensar sobre a escolha desses documentos e a forma de reuní-los. Segundo ele, nos textos escritos:

“... os enfoque de seus argumentos são também uma montagem um truque, uma trucagem. Basta se perguntar: com a possibilidade de consultar as mesmas fontes, será que os historiadores escreveram, todos eles a mesma história da Revolução?”. 2


Em síntese o que historiador francês apresenta é um desafio que nos lança em outra dimensão; dimensão anárquica, onírica; e que, portanto, leva-nos a perceber uma relação entre história e cinema de maneira também heterodoxa. Perceber a relação ficcional que há no texto escrito para entender a ficção cinematográfica. Reeducar o olhar para o audiovisual; para o visível e para o invisível. Pensar no cinema como algo que rompa com o absoluto e ao mesmo tempo entendê-lo como objeto transgressor porque subverte o fenômeno histórico. A “contra-análise”, termo que tomamos emprestado de Ferro sintetiza essa obscuridade que vai no sentido não da escuridão, mas ao paroxismo de uma claridade irresoluta da película; que para ele, ironicamente:
“... tem essa capacidade de desestruturar aquilo que diversas gerações de homens de Estado e pensadores conseguiram ordenar num belo equilíbrio. (...) destrói a imagem do duplo que cada instituição, que cada indivíduo conseguiu construir diante da sociedade”. 3

Essa relação metonímica, excepcional emanada pelo cinema é organicamente um instrumento de subversão e manutenção do “status co” tanto no campo simbólico quanto na sua funcionalidade real no interior de uma sociedade industrial capitalista. O duplo para Ferro é esse movimento de constituição e fragmentação dos indivíduos e das instituições que se chocam através do espelho cinematográfico; que se comporta ou pela existência de um cinema dominante (o Cinema Norte-Americano), rigidamente codificado, e a sua retórica de base: “a impressão da realidade”; ou das oposições, onde inspirações diversas definem propostas de “um outro cinema” (o Neo-realismo Italiano, a Nouvelle Vague, o Cinema Novo...); dissidência franca que conseguiu se fazer ouvir, para valer, em pequenos círculos ao longo desses anos, tal como tem acontecido com diferentes práticas artísticas marcadas por uma ruptura com os códigos da indústria cultural. Nesse contexto, a experiência do cinema, em suas diferentes matizes e particularidades, constitui talvez a matriz fundamental de processos que ocupam hoje a maior parte da Nova História Cultural e dos intelectuais que interrogam a modernidade e pensam as questões estéticas do nosso tempo.
Assim, a relação entre Cinema e História torna-se sempre um movimento duplo, ambíguo; texto e subtexto; moderno e arcaico; presente, passado e futuro; interação sub-reptícia de vários textos simultâneos.
O filme, como qualquer texto, apresenta um claro subtexto, expresso nas figuras de linguagem através das montagens, como alegoria (estratégias de disfarce), a metáfora (conceitos abstratos) ou a síncope (violação da ordem cronológica). Neste sentido, qualquer trabalho que se utilize o cinema como fonte historiográfica implica a observação detalhada de todos estes textos superpostos e simultâneos. Marc Ferro observa que a análise não incide necessariamente sobre a obra em sua totalidade, mas apoiando-se “sobre extratos, pesquisar séries, compor conjuntos”. Segundo ele:

“É preciso aplicar esses métodos a cada um dos substratos do filme (imagens, imagens sonorizadas, não sonorizadas), as relações entre os componentes desses substratos; analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa”. 4


Essa realidade que, segundo Ferro, o cinema à vontade reproduz e organiza é a realidade do mundo que nos impregna; é um continuum sensível pelo qual a película se faz moldar tanto espacial como temporalmente. Não podemos repetir um só instante das nossas vidas, porém qualquer um desses instantes que o cinema repete indefinidamente, podemos vê-lo. Um outro aspecto importante é sobre o papel do historiador em perceber claramente as intenções do realizador, seu ambiente histórico e cultural, que lançam a luz sobre o próprio filme (sobre como, por exemplo, perceber as obras e o referencial teórico de Serguei Eisenstein; ainda referência ímpar neste século, não havendo reflexão sobre cinema que se iguale à sua; na amplitude do pensamento, no fôlego da argumentação). Perceber que as fontes nunca são completas e devem ser lidas diversamente em cada época, para cada observador, de acordo com os valores, projetos e gostos.
Dessa forma, o cinema que nos faz pensar na equivalência profunda da matéria e do espírito, do contínuo e do descontínuo, do aleatório e do determinado, nos indica também a profunda natureza comum do real e do irreal, que são ligados por finas transições e que se fazem e desfazem um do outro, um no outro, um pelo outro. Tais imagens se fundem em nossa consciência numa cena total, embora não sejam as partes de um imutável mosaico existente, nem nunca poderiam ser transformadas numa imagem englobante e única.
A investigação histórica não nos mostra apenas as modalidades de renovação que as mensagens informativas executam em face dos códigos e ideologias. Mostra-nos, ao mesmo tempo, o movimento contínuo pelo qual a informação redimensiona códigos e ideologias e se retraduz em novo código e nova ideologia.
Ficará mais claro entendermos esse processo se, ao invés de aplicarmos todos os conceitos de ideologia em nossa reflexão, partirmos do conceito Leninista; que faz uso do termo como qualquer percepção da realidade social ou política, vinculada ao interesse de certas classes sociais. Tal visão nos permitirá situar historicamente alguns exemplos funcionais de discursos emanados pelo Estado e suas implicações doutrinárias, tendo como eixo difusor o cinema; para em seguida especularmos sobre as possíveis intervenções críticas do historiador nesse universo.
O uso do cinema como veículo de propaganda, doutrinação e falseamento do passado vem de longe. O cinema soviético (glorificando o socialismo), o cinema nazista (anti-semita, porém de ótima qualidade estética) e o cinema norte-americano (sofisticado como máquina de alienação) muito contribuíram para fins políticos e para o contrabando ideológico.
Após o triunfo da Revolução Russa, os comunistas utilizaram o cinema como instrumento de propaganda. Para os dirigentes soviéticos, a sala de cinema deveria “substituir o boteco e a igreja, devendo ser suporte para a educação das massas”. Muitos filmes foram produzidos. Do ponto de vista histórico, em filmes como O Encouraçado Potemkin e Alexandre Nevsky, de Eisenstein, muitos fatos foram distorcidos e até alterados para coadunarem-se aos objetivos políticos propostos. Era o cinema a serviço de uma causa.
Na Alemanha nazista, o cinema esteve a serviço do regime. Noventa e seis filmes saíram diretamente do Ministério da Propaganda. Esses exaltavam o Fuhrer, a militância partidária, a vida rural, as grandes figuras da história da Alemanha, e atacavam os comunistas, os liberais e, sobretudo os judeus. O jovem hitlerista Quex conta à história de um jovem assassinado pelos comunistas. O enredo expõe a opressão sob a qual vivia a minoria alemã na Polônia. Em O Triunfo da Vontade (sobre vários congressos do Partido Nazista), temos um filme de propaganda de enorme qualidade, tanto técnica como estética. O ódio aberto aos judeus aparece em O Judeu Suss.
Os norte-americanos usaram o cinema para execrar os nazistas e os japoneses, produzindo centenas de filmes de guerra com uma visão maniqueísta, glorificando os Estados Unidos como o principal defensor do mundo livre. Durante a Guerra Fria, milhares de filmes foram produzidos exaltando “o modo de vida do americano” e repudiando a vida cinzenta, sem liberdade e opressiva dos chamados países da “cortina de ferro”.
Logo, é verdade que os cineastas têm cometido distorções sobre o passado. É verdade também que filmes com erros históricos (não só de datas, fatos, mas também conceituais) podem ser verdadeiras obras de arte. Se os encararmos como ficção, tudo bem. No entanto é preciso uma avaliação crítica das “verdades históricas” apresentadas nessas megaproduções. A especificidade cinematográfica se refere no campo da investigação histórica, pois, a um trabalho renovador e, ao mesmo tempo, a um processo de transformação. O que importa é saber se o trabalho está à mostra, se o consumo do produto provoca um efeito de conhecimento; ou se ele é dissimulado e, neste caso, o consumo do produto será evidentemente acompanhado de uma mais-valia ideológica.
No plano prático, coloca-se a questão dos procedimentos pelos quais o trabalho do historiador pode efetivamente tornar-se legível em sua inscrição. E nesse caso utilizar os recursos tecnológicos modernos como instrumentos úteis no processo de pesquisa é de grande relevância. Exige, no entanto, pesquisa, leitura crítica, debate, diversidade metodológica e ideológica e, sobretudo o saber pensar e analisar o filme. Às vezes os cineastas, totalmente imbuídos de seus produtos, proclamam-se historicamente “precisos”, “fiéis”; e muitos historiadores os supõem assim.
Marc Ferro sublinha a função do historiador em face aos documentos e dos aparelhos (partidos políticos) que os utilizam ou ocultam em seu próprio favor. Logo:

“O historiador tem por função primeira restituir à sociedade a História da qual os aparelhos institucionais a despossuíram. Interrogar a sociedade, pôr-se a sua escuta, esse é, em minha opinião, o primeiro dever do historiador”. 5


Cabe ao historiador, nesse sentido, romper qualquer tipo de processo hegemônico-cultural e exercer uma influência mais marcante, um controle mais eficaz sobre as sugestões provenientes da leitura dos documentos. Ferro nos diz que, para isso:

“Em lugar de se contentar com a utilização dos arquivos, ele deveria antes de tudo criá-los e contribuir para a sua constituição: filmar, interrogar aqueles que jamais têm direito à fala, que não podem dar os seus testemunhos. O historiador tem por dever despossuir os aparelhos do monopólio que lhes atribuíram a si próprios e fazem com que sejam a fonte única da história”. 6


Ou seja, o esforço do historiador está marcadamente atribuído por um pressuposto de combate a mistificação; e também em confrontar os diferentes discursos da História, a descobrir, graças a esse confronto, uma realidade não visível. A obra cinematográfica que ensina a pensar a história de modo diferente e a ver o mundo com olhos novos, no momento mesmo em que se estabelece como fonte, torna-se modelo. Institui novos hábitos na ordem dos códigos e das ideologias: depois do aparecimento daquela obra, será diferente pensar a história da maneira como ela a usara e ver o mundo da maneira como ela o mostrara. Reestruturam-se novos códigos e novas expectativas ideológicas. O movimento recomeça. O historiador sensível que queira colher a obra cinematográfica em todo o seu viço, não deve apenas lê-la à luz dos seus próprios códigos. Deve procurar o universo retórico e ideológico e as circunstâncias de comunicação de onde a obra partiu.
É através desse universo teórico-metodológico-científico que chegamos ao historicismo; que descobriu a relatividade histórica do conhecimento, descobriu a limitação unilateral de toda a interpretação científica da realidade, desmistificou as ilusões positivistas de um conhecimento absoluto, neutro, da realidade, mostrou a importância de se dar conta da especificidade, da particularidade do conhecimento científico da sociedade, das diferenças entre o conhecimento social e os conhecimentos das ciências naturais. Mas não conseguiu superar os dilemas do relativismo, para qual todo conhecimento é parcial e subjetivo.
Portanto, na análise de um filme, como qualquer outra mensagem, devemos observar que ele contém seus próprios códigos: quem hoje lê os poemas homéricos extrai dos significados denotados pelos versos uma tamanha massa de noções sobre o modo de pensar, de vestir, de comer, de amar, ou de guerrear daqueles povos, que está apto a reconstruir seus sistemas de expectativas ideológicas e retóricas. Do mesmo modo, encontra-se, assim, no cinema, as chaves que nos possibilitem vê-lo inserido no ambiente histórico do qual saiu; as chaves com que relacionamos a mensagem aos seus códigos de origem; reconstruídos por um processo de interpretação contextual determinada.
A Filologia e a Semiologia podem auxiliar a História nesse trabalho de informação que nos leva não a dissecar a obra cinematográfica numa leitura acadêmica, mas a reencontrá-la nas condições de novidade em que nascera: a reconstruir em nós a situação de virgindade em que se encontrava quem dela se aproximou pela primeira vez; observando que cada interpretação da obra, preenchendo de novos significados a forma vazia e aberta da mensagem original dá origem a novas mensagens-significado; as quais passam a enriquecer nossos códigos e nossos sistemas ideológicos; reestruturando-os e dispondo os historiadores de amanhã a uma nova situação interpretativa em relação à obra. Isso num movimento contínuo, sempre renovado, que a Semiologia define e analisa nas suas várias fontes (“verdades”), mas não pode prever quanto às formas concretas que irá assumir.
Portanto, poderíamos deduzir que o caminho para essas “verdades”; o caminho para a subjetividade do processo metodológico de observação do cinema como fonte histórica é, ao mesmo tempo o caminho do ecletismo, que toma um pouco de cada visão de mundo, um pouco de cada teoria e, juntando esses aspectos parciais e unilaterais, supostamente chegaremos a uma visão multilateral, geral, universal e objetivamente válida (?).
Essa concepção universal, relativista que é muito popular, e que se encontra muito freqüentemente na vida universitária pode ser considerada como “ilusão”, justamente pelo seu caráter infinito. Basta mencionar as tentativas de síntese entre o positivismo (trabalhando com a hipótese de que a metodologia das ciências sociais tem que ser idêntica à metodologia das ciências naturais, posto que o funcionamento da sociedade é regido por leis do mesmo tipo das da natureza) e o marxismo (caracterização de uma teoria como representando o ponto de vista que está centrado na luta de classes), existe dezenas, centenas talvez. Além do que, que tipo de síntese? Entre que tipo de teorias? Existe uma quantidade infinita de sínteses possíveis entre os vários pontos de vista, as várias visões de mundo, as várias teorias. Então, em lugar de ser ter três, quatro ou cinco teorias fundamentais sobre a relação entre cinema e história e suas implicações metodológicas, ter-se-iam três, quatro, cinco, dez, tentativas de síntese, diversas entre elas, cada uma delas pretendendo ser a melhor. Cada uma com o seu pensamento de classe.
Voltamos assim ao ponto de partida: infinidades de pontos de vista, cada um deles pretendendo que é objetivo, que é verdadeiro, negando os outros, resultando do mesmo caos e a mesma anarquia. O ecletismo não nos avançou em nada, simplesmente reformulou os mesmos problemas, os mesmos dilemas, a um outro nível.
Sobre esse dilema, a lógica da avaliação cinematográfica deve introduzir, segundo Marc Ferro, uma moldura que se cristalize na história como ciência operatória. Para ele:

“(...), a História deveria fornecer uma reposta, mas freqüentemente a serviço das instituições, ela se contenta em distribuir o sonho, mesmo portando a máscara do cientificismo. Ela se recusa demais a explicar o presente, daí a onda, fugaz é verdade, da Sociologia”. 7



- Uma investigação para além da “ciência operatória”
O universo fílmico é a anti-histórico; metateatral, metalinguístico, metasonho, metarealidade; político, antipolítico. A invisibilidade cinematográfica está no seu próprio discurso; que deve ser confrontado permanentemente em todos os campos (estético, sociológico, antropológico, psicanalítico, filosófico, tecnológico, econômico...); entender o realismo ficcional do cinema para relativizar a crueza ingênua e dogmática das fontes escritas é, ao mesmo tempo, entender “Que aquilo que não aconteceu (e por que não aquilo que aconteceu?), as crenças, a intenções, o imaginário do homem, são tão História quanto a História” 8. A mudança de paradigma em descobrir os métodos de análises aplicáveis à história contemporânea é, portanto, ideológica e antiideológica, histórica e anti-histórica quando se refere ao cinema. O paradoxo não se estabelece apenas no desafio em restituir a sociedade uma consciência “cidadã”, anti-mistificante como nos aponta Ferro; mas em pensar essa mesma sociedade para e através de um cinema revolucionário, antiburguês, comprometido com as causas importantes do seu tempo. Tal processo forneceria a História um outro estatuto interpretativo. O cinema irracional, a História irracional, o historiador e as fontes pautadas por uma irracionalidade crua, revolucionária que balizaria um novo método de avaliação e interpretação da história. Um poema lido ao contrário; toda a tragédia latino-americana, euro-americana, afro-brasileira e mundial. O delírio trágico da fome e da miséria terceiro-mundista seria novamente o grande desafio do cinema mundial e a sua nova vocação histórica; que é antiindustrial, antiacadêmica e, antes de tudo, revolucionária. A “História Nova” é a revolução e o Cinema a sua arma.
A interpretação cinematográfica da história e a reinterpretação histórica do cinema devem fugir completamente aos padrões convencionais (do arcaísmo, do tradicionalismo, do dogmatismo, do positivismo, historicismo e do ecletismo) e encontrar um novo caminho como nos aponta Ferro; reposta marginal aplicada num universo cuja investigação se desdobra, ainda, como denúncia social e não como problema político. Observamos que o ausente distanciamento da História se coloca do mesmo lado que a “ficção” cinematográfica. Nem a História Contemporânea consegue se explicar pela falta de distanciamento com os métodos de análise e nem o Cinema mundial se libertou completamente do vício subcomercial imposto pela indústria cultural. Logo:

“(...) creio que não se trata nem de incapacidade nem de retardamento, mais sim de uma recusa em enxergar, uma recusa inconsciente, que procede de causas mais complexas. (...), lendo os Historiadores da História, percebe-se que a ideologia do historiador variou, que diversos tipos de historiadores coabitam e constituem meios que, entre eles, quase não se reconhecem, mas que os não-historiadores são capazes de identificar graças aos signos específicos de seus discursos”. 9


Logo, uma nova crítica se abre a uma nova perspectiva de avaliação do cinema como agente da História. A posição de Ferro é sintomática, neste caso, porque se desloca para além da História; sua metáfora é a do hibridismo, da pluralidade e da combatividade; sem o peso institucional. Ele nos mostra que a opção metodológica desta ou daquela avaliação histórica com um sistema fechado em si mesmo é profundamente incorreto. Diríamos que a possibilidade de haver um deslize de um tipo de pensamento para o outro, de uma categoria para outra, e mais – a coexistência simultânea, em proporções variáveis, de diferentes tipos e estágios (não-relativistas), precisam ser levadas em conta; pois muito elucidam que o cinema e a história se renovam e revelam; e que existe:

“(...) matéria para uma outra história, que certamente não pretende constituir um belo conjunto ordenado e racional, como a História; mas contribuiria, antes disso para refiná-la ou destruí-la”. 10

O refinamento para Ferro se coloca no que aí está; resultados irrisórios, constatações evidentes e descrições limitadas; já a destruição é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que envolvem a complexidade da investigação “cinematohistórica”: a sua própria verdade dialética.



- História do Brasil em tela: balanço sobre textos acadêmicos produzidos com filmes históricos brasileiros
Neste capítulo veremos alguns resumos de teses e dissertações defendidas em Universidades Públicas do Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis entre os anos de 1993 e 2003 que relacionam, como objeto de pesquisa, questões cuja relevância histórica está ligada a nossa discussão. O objetivo é tentar entender tipos de percepções que foram utilizadas ou não; além de identificar genericamente possíveis chaves de análise que possam nos ajudar em projetos futuros.

1)Autor: ALMEIDA, Cláudio Aguiar
Título: Cinema como agitador de almas: Argila, uma cena do Estado Novo
Cidade: Säo Paulo
Instituição I: Universidade de Säo Paulo
Instituição II: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Data de defesa: 1993.06.24
Volume: 1 v
Páginas: 223 p
Orientador: Maria Helena Rolim Capelato
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca CAPH
Resumo/abstract: Analisa a produçäo cinematográfica de longa-metragem e a política oficial do Estado Novo. Utiliza o filme "Argila" - de Humberto Mauro para estudar a influência da política na produçäo artística/cinematográfica no Brasil de Getúlio Vargas. Mostra a trajetória de nomes do cinema brasileiro dos anos 20, destacando as primeiras tentativas desses grupos em fazer do Estado, o grande mecenas do cinema. Estuda a luta dos produtores brasileiros e os projetos de Getúlio Vargas. Analisa alguns filmes de curta-metragem e seus conteúdos ideológicos. Enfoca as obras e propostas de Edgar Roquette-Pinto. Interpreta os conteúdos temáticos de Argila, relacionando-os ao contexto da época. (CAPH)
Descritorios primários: Argila; Estado Novo; História do Brasil; Cinearte; Cinédia; Instituto Nacional de Cinema Educativo; INCE; Cine Jornal Brasileiro; Curta-Metragem; Inconfidência Mineira; Chanchada; Cinejornal; USP
Pessoa: Mauro, Humberto; Pinto, Edgar Roquette
Fonte: usp.br/sibi; ibict.br; capes.gov.br
Publicação: ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O cinema como "agitador de almas". São Paulo, Annablume/Fapesp, 1999.
Data de entrega: 1993

2)Autor: GUEDES, Joäo Januário Furtado
Título: Figuras do real: a história do Brasil na arte do cinema
Cidade: Rio de Janeiro
Instituição I: Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituição II: Escola de Comunicação
Data de defesa: 1994.07.01
Volume: 1 v
Páginas: 129 p
Orientador: Rogério Luz
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca ECO
Resumo/abstract: Análise fílmica do cinema brasileiro nos anos sessenta-oitenta exemplificado no "Cabra Marcado para Morrer" de Eduardo Coutinho. Teórica e metodologicamente afasta concepçöes tradicionais da historiografia bem como sobre o fim da história e assume a análise do filme como análise ideológica. Dessa maneira o percurso analítico centra-se na relaçäo entre estética e ideologia e chega a tomar partido explicitamente quando busca identificar a qualidade e a densidade do discurso político no filme analisado. Interroga o filme, objeto cultural, quanto à historicidade de suas formas ao momento histórico da emergência de suas possibilidades em termos de linguagem. A funçäo específica de sua estética encaminha a superaçäo da dicotomia entre análise interna e externa do filme, apreende elementos importantes (traços "pistas") para o conhecimento da história do oprimido no Brasil. Conhecimento relacionado especialmente ao projeto nacionalista populista de intelectuais brasileiros de esquerda (neste caso cineastas) nos anos sessenta. A meditaçäo através da prática cinematográfica de Coutinho sobre o fracasso desse projeto ao resgate de um modelo de participaçäo política em outros termos. Além disso estabelece um "canteiro de obras" teórico metodológico que permitirá o desdobramento de práticas analíticas sistemáticas e abrangentes do filme brasileiro.(Stumpf/Caparelli)
Descritorios primários: História; Populismo; Cabra marcado para morrer; UFRJ
Pessoa: Coutinho, Eduardo
Desde: 1960
Até: 1980
Fonte: minerva.ufrj.br; rumba.ilea.ufrgs.br; ibict.br; capes.gov.br
Data de entrega: 1994



3)Autor: BAMBA, Mahomed
Título: Letreiros e grafismos nos processos fílmicos: funcionalidade narrativa, plástica e discursiva da língua escrita na figuração cinematográfica
Cidade: São Paulo
Instituição I: Universidade de São Paulo
Instituição II: Escola de Comunicações e Artes
Data de defesa: 2002.08.20
Volume: 1 v
Páginas: 236 p
Ilustração: Ilus.
Orientador: Mariarosaria Fabris
Grau: Doutorado
Disponibilidade: Biblioteca ECA
Resumo/abstract: O objetivo principal deste trabalho é destacar a existência e a importância de uma dimensäo gráfica na figuraçäo cinematográfica e, mais especificamente, as funçöes narrativa, discursiva e enunciativa que acompanham a exibiçäo de palavras e grafismos sobre os diversos objetos e suportes de comunicaçäo que, por alguns momentos, encontram-se destacados pelos diferentes movimentos de câmera no interior do texto fílmico. A partir de uma revisäo das grandes correntes teóricas cinematográficas, buscamos, de um lado, reconstruir um percurso teórico que leva ao reconhecimento progressivo de um estatuto cinematográfico para as manifestaçöes de língua escrita encontradas nos filmes e, por outro lado, procuramos, através de uma análise fílmica, confrontar diferentes projetos estéticos, semióticos e narrativos em que a prática da exibiçäo das palavras filmadas está colocada em primeiro plano e nos quais estas palavras-imagens estäo diretamente relacionadas com o processo de manifestaçäo do ponto de vista da primeira instância do discurso fílmico.
Descritorios primários: Ganga bruta; Leone have sept cabeças, Der; História do Brasil; Como era gostoso o meu francês; Bandido da luz vermelha, O; Congo; ABC da greve; Tonica dominante; USP
Pessoa: Mauro, Humberto; Rocha, Glauber; Santos, Nelson Pereira dos; Sganzerla, Rogério; Omar, Arthur; Hirszman, Leon; Chamie, Lina
Fonte: sibinet
Observações: Os filmes brasileiros mais extensamente analisados dentro da proposta do autor säo O bandido da luz vermelha (p.194-204) e Congo (p.204-8).
Data de entrega: 2002



4)Autor: FLORES, Maria Isabel Urbina
Título: Cinema Novo: uma contribuição para o ensino de História do Brasil
Cidade: São Carlos
Instituição I: Universidade Federal de São Carlos
Instituição II: Programa de Pós-Graduação em Educação
Data de defesa: 2003
Volume: 1 v
Páginas: 95 p
Orientador: Amarílio Ferreira Júnior
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca UFSCAR
Resumo/abstract: Apresentamos uma proposta pedagógica que utiliza os filmes "Deus e o diabo na terra do sol" e "Terra em transe" de Glauber Rocha como recurso didático auxiliar a disciplina História do Brasil, abordando um dos períodos mais conturbados da formação social brasileira. Da transição de uma sociedade agrário-industrial para uma sociedade urbano-industrial que selou o fim do nacional-populismo e ao mesmo tempo esboçou a última manifestação autoritária das elites políticas brasileiras. A partir do resultado das análises dos Planos de Ensino das escolas "Anglo", E.E. "Álvaro Guião" e E.E. "Antonio Militão de Lima" da cidade de São Carlos, para a disciplina de História dos 2 e 3 anos do ensino médio, levantamos uma série de pontos que devem ser considerados pelo educador que quiser utilizar os filmes como recurso didático. E sugerimos um modelo de prática educativa com os filmes do cineasta Glauber Rocha, abrangendo conteúdos da disciplina História do Brasil para o ensino médio.
Descritorios primários: Cinema Novo; Educação; Ensino; História do Brasil; UFSCAR; Deus e o diabo na terra do sol; Terra em transe
Pessoa: Rocha, Glauber
Fonte: bco.ufscar.br
Geográficos: São Carlos - SP
Data de entrega: 2003



5)Autor: FONSECA, Vitória Azevedo da
Título: História imaginada e cinema: análise de Carlota Joaquina, a princesa do Brazil e Independência ou Morte
Cidade: Campinas
Instituição I: Universidade Estadual de Campinas
Instituição II: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Data de defesa: 2002
Volume: 1 v
Páginas: 330 p
Orientador: Leandro Karnal
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca Central Unicamp
Resumo/abstract: A presente dissertação é uma comparação entre os filmes históricos Carlota Joaquina, a princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995) e Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972) e tem como objetivo compreender como estes representam a história do Brasil. A análise aborda, principalmente, os seguintes aspectos: comparação dos elementos da linguagem cinematográfica; processo de produção dos filmes ressaltando a preocupação, ou ausência dela, com a "reconstituição histórica" dos filmes e com a realização de pesquisas históricas; o diálogo que os filmes estabelecem com suas respectivas fontes históricas e como criam os significados históricos em imagens e, por fim, aspectos da recepção crítica dos filmes.
Descritorios primários: História; Carlota Joaquina: princesa do Brasil; Independência ou morte; Unicamp; Cinema e História
Pessoa: Camuratti, Carla; Coimbra, Carlos
Fonte: unicamp.br; capes.gov.br
Observações: Há versão eletrônica no site da Capes.
Data de entrega: 2002



6)Autor: CARDOSO, Maurício
Título: História e cinema: um estudo de Säo Bernardo (Leon Hirszman, 1972)
Cidade: São Paulo
Instituição I: Universidade de São Paulo
Instituição II: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Data de defesa: 2002.04.17
Volume: 1 v
Páginas: 137 p
Orientador: Zilda Márcia Grícoli Iokoi
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca CAPH
Resumo/abstract: Esta dissertaçäo de Mestrado interpreta o filme Säo Bernardo (Leon Hirszmann, 1972) explicitando, através da análise da linguagem cinematográfica e da recuperaçäo histórica, alguns significados estéticos da obra. Procuramos indicar que a construçäo do universo ficcional do narrador-personagem, Paulo Honório, e sua crescente perda de significado realizou-se pela manipulaçäo de determinadas estratégias narrativas, cujo resultado foi o surgimento de um "outro narrador". Ao mesmo tempo, as mediaçöes entre a ficçäo e o contexto social, evidenciaram as condiçöes de classe de Paulo Honório e Madalena, indicando um diagnóstico expressivo das tensöes sociais no campo, entre a décadas de 30 e 70. Neste sentido, o filme elabora uma crítica aos modelos de crescimento econômico e de atuaçäo dos setores dominantes que tem articulado a modernizaçäo dos processos de produçäo e a manutençäo de formas de dominaçäo das populaçöes rurais.
Descritorios primários: São Bernardo; Literatura; Adaptação; USP
Pessoa: Hirszman, Leon
Desde: 1930
Até: 1970
Fonte: usp.br/sibi
Data de entrega: 2002



7)Autor: LINO, Sonia Cristina da Fonseca Machado
Título: História e cinema: uma imagem do Brasil nos anos 30
Cidade: Niterói
Instituição I: Universidade Federal Fluminense
Instituição II: Departamento de História
Data de defesa :1995.01.01
Volume: 1 v
Páginas: 173 p
Ilustração: Ilustrado com 15 reproduçöes de fotos de filmes e pessoas.
Anexos: Relaçäo dos filmes citados (p.165-8)
Orientador: Rachel Soihet
Grau: Doutorado
Disponibilidade: Biblioteca Central UFF; Biblioteca de Humanidades UFC
Resumo/abstract: Este trabalho tem como objetivo compreender a década de 30 sob a ótica da produçäo cinematográfica ficcional aqui realizada e entendendo o período como de formaçäo de uma imagem social da naçäo. Utiliza-se a produçäo historiográfica sobre o cinema brasileiro e os periódicos de época para entender a imagem do país e do cinema idealizados pelos produtores. A partir da análise dos filmes e das críticas de época estabelece-se entre o idealizado e o filmado, o espaço considerado como o da especificidade nacional. Através dos filmes e do pensamento dos seus produtores chega-se à construçäo de uma auto-imagem com consequências marcantes tanto para a história do cinema brasileiro quanto para a delimitaçäo do conceito de nacional.
Descritorios primários: Cinema e História; Cinemas; Fan, O; Cinearte; DIP; Departamento de Imprensa e Propaganda; Cinédia; Chanchada; UFF
Pessoa: Gomes, Paulo Emilio Salles
Desde: 1931
Até: 1940
Fonte: biblioteca.ufc.br; capes.gov.br
Observações: Também aparece com 168 p.
Data de entrega: 1995



8)Autor: MOTTA, Sidney Silva da
Título: O livro de imagens luminosas: Estado Novo e cinema
Cidade: Rio de Janeiro
Instituição I: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Data de defesa: 2000.12.01
Volume: 1 v
Páginas: 101 p
Orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna
Grau: Mestrado
Disponibilidade: Biblioteca UFRRJ
Resumo/abstract: O presente trabalho tem como objetivo analisar o período compreendido entre 1937 e 1945, conhecido como Estado Novo Brasileiro, a partir da relaçäo teórico-metodológica entre história e cinema. Utiliza-se o cinema de ficçäo nacional para entender como as propostas de naçäo, nacionalidade e formaçäo social elaboradas pelo Regime foram traduzidas para a memória coletiva.
Descritorios primários: Estado Novo; Cinema e História; UFRRJ
Pessoa: Vargas, Getúlio
Fonte: capes.gov.br
Data de entrega: 2000



9)Autor: CASAROTTO, Abele Marcos
Título: O Contestado e os estilhaços da bala: literatura, história e cinema
Cidade: Florianópolis
Instituição I: Universidade Federal de Santa Catarina
Instituição II: Programa de Pós-Graduação em Literatura
Data de defesa: 2003
Volume: 1 v
Páginas: 263 p
Orientador: Lauro Junkes
Grau: Doutorado
Disponibilidade: Biblioteca Central UFSC
Resumo/abstract: O objeto de estudo centra-se na relação entre literatura, história e cinema. A tese é estruturada em dois capítulos: o primeiro institui os fundamentos teóricos entre literatura, história e cinema, considerando o texto como elemento unificador das três áreas do conhecimento; o segundo estabelece relações entre os textos produzidos antes da Guerra do Contestado, os ralatórios de guerra, os textos históricos, o romance Geração do Deserto, de Guido Wilmar Sassi - texto centralizador da discussão - e o filme A guerra dos pelados, de Sylvio Back. Os textos são considerados como estilhaços da Guerra do Contestado.
Descritorios primários: História; Literatura; Guerra dos pelados, A; UFSC
Pessoa: Back, Sílvio
Fonte: npd.ufsc.br
Data de entrega: 2003




10)Autor: ABREU, Nuno César Pereira de
Título: Boca do Lixo: cinema e classes populares
Cidade: Campinas
Instituição I: Universidade Estadual de Campinas
Instituição II: Instituto de Artes
Data de defesa: 2002.11.25
Volume: 3 v
Páginas: 770 p
Ilustração: Reproduçäo de folhas de entrada do banco de dados do Anexo 2
Filmografia: Filmografia da Boca do Lixo (1969-1982)
Anexos: Anexo 1 (entrevistas, p.1-297); Anexo 2 (filmografia, p.I-IX e 1-219)
Orientador: Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos
Grau: Doutorado
Disponibilidade: Biblioteca Central Unicamp
Resumo/abstract: Este trabalho propöe-se a tratar de aspectos da história social da indústria cinematográfica da Boca do Lixo, no quadro geral do Cinema Brasileiro, nos 1970, tendo como ambiente político o regime militar com a repressäo e a censura, por um lado, e os incentivos econômicos e a legislaçäo protecionista por outro. Através de entrevistas procura-se tecer uma trama que relate o processo de desenvolvimento de um processo social, que contém o econômico e o estético, de um ciclo de produçäo cinematográfica que se propôs a enfrentar o produto estrangeiro com o "similar nacional", ocupando parcela significativa do mercado exibidor - controlado pela distribuiçäo internacional. Um ciclo que teve características próprias - que interessa observar - em seus aspectos essenciais, principalmente através de seus personagens - sujeitos que relatam seu lugar na história do Cinema Brasileiro. A partir da rememoraçäo dos depoentes foram sendo estabelecidos recortes num inventário existencial, foi se dando um resgate, em que vozes singulares väo revelando, através de percursos de vida, uma rede de aspectos sociais, econômicos e culturais do desenvolvimento de uma "comunidade". A do cinema da Boca do Lixo. O trabalho se compöem de três partes maiores: o primeiro volume que faz uma reflexäo sobre a produçäo cinematográfica da Boca do Lixo, o segundo é um caderno de entrevistas, e o terceiro, a filmografia.
Descritorios primários: Pornochanchada; Boca do Lixo; Embrafilme; História; Unicamp
Pessoa: Bernardet, Jean-Claude; Cunha, Claudio; Cardoso, David; Prado, Guilherme de Almeida; Ramos, Helena; Araújo, Inácio; Castillini, Luiz; Massaini Neto, Aníbal; Portioli, Cláudio; Mastrangi, Matilde; Scalvi, Patrícia; Reichembach, Carlos; Renoldy, Silvio; Sternheim, Alfredo
Desde: 1969
Até: 1982
Fonte: unicamp.bc/br
Geográficos: São Paulo - SP
Data de entrega: 2002



- Concepções preliminares: Hipóteses
Percebemos de inicio, em todos os resumos, maneiras de envolver e discutir o universo cinematográfico em diferentes contextos; histórico, social, político, artístico, pedagógico e estético. Vejamos o primeiro e o sétimo resumo. O ato discursivo da película mesmo fora do contexto histórico atual comprova e revitaliza a experiência de um cinema que está, inexoravelmente e organicamente, vinculado ao Estado. A hipótese, já comprovada, nos permitiria trabalhar mais intensamente na questão sob uma perspectiva vista de baixo; ou seja, sem dispensar a análise gramsciana desses grupos (Cinédia; Instituto Nacional de Cinema Educativo; INCE...), articular também o resultado social e político dessas implicações na construção de uma identidade nacional (como nos sugere também o oitavo resumo); trabalhando inclusive com as cartas da época encaminhadas ao “pai dos pobres”; o Dr. Getúlio Vargas.
Vejamos o segundo resumo. A questão histórica – que, aliás, está sempre presente – “ganharia um outro contorno estético-ideológico” ao tentar verificar através do filme “Cabra Marcado para Morrer” de Eduardo Coutinho quais foram às causas para o “fracasso do projeto nacionalista populista de intelectuais brasileiros de esquerda (neste caso cineastas)” nos anos sessenta; afirmação antecipada “empiricamente” pelo pesquisador que se propõe, através do filme, reconstruir, segundo ele, “um canteiro de obras teórico metodológico que permitirá o desdobramento de práticas analíticas sistemáticas e abrangentes do filme brasileiro”. A primeira questão para nós seria isolar o termo populismo; suas implicações semânticas, a sua contextualização histórica, verificando os textos publicados sobre o assunto (ex: Ferreira, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: Jorge Ferreira. (Org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. 1 ed. Rio de Janeiro, 2001). Mapear quais os caminhos percorridos pelo autor da dissertação que o levaram ao uso legítimo do termo “populista” sob sua ótica. Um outro pressuposto seria identificar historicamente o que foi esse projeto populista; se ele de fato existiu no Movimento do Cinema Novo e porque fracassou. Estudar se o filme do Eduardo Coutinho efetivamente auxiliaria do ponto de vista “teórico metodológico” para entendermos tais questões sugeridas na pesquisa; ou se poderíamos encontrar outras produções que nos ajudassem a ampliar o universo pesquisado.
Num outro momento a questão propriamente discursiva, que envolve outros elementos de expressão (esteticamente falando), compõe uma percepção metalingüística do cinema. Vejamos o terceiro e o nono resumo; onde está sugerida uma ampliação do discurso cinematográfico. A intertextualidade e a hibridização, nesse caso, aproximam e dilatam os horizontes de uma avaliação entre o cinema e a história. Para nós seria interessante verificar e avançar didaticamente nas possibilidades discursivas; sempre permitindo aliar o experimentalismo solto e muitas vezes poético do cinema a visão sempre holística da historiografia. A experiência do Contestado permite-nos ampliar essa moldura tridimensional (historia social, cinema e literatura) por ser um tema absurdamente fecundo; justamente por que envolve conflito, o choque, o rústico...
Uma outra intervenção não muito “experimental” como a que vimos no parágrafo anterior seria uma verificação strictu-sensu do texto histórico adaptado para o cinema. Vejamos os resumos cinco e seis. Sem nos determos especificamente na questão da linguagem, gostaríamos, aqui, de sublinhar a importância do cinema como fonte histórica; pensando inclusive no que se traduziria verdadeiramente o confronto de dois filmes (Carlota Joaquina, a princesa do Brasil e Independência ou morte); qual a especificidade de cada um; o que é aprofundado ou omitido nos dois filmes; e que leitura do Brasil pode ser feita através dessas obras. No filme Säo Bernardo (Leon Hirszmann, 1972) a representação pode, além de dialogar com a História, reintroduzir uma nova possibilidade de investigação histórico-social do Brasil a partir dos antagonismos e/ou interesses de classe (a questão do campesinato entre décadas de 30 e 70). Admitindo, nesse caso, a uma percepção de como efetivamente o universo ficcional traduz, exemplifica e problematiza essa realidade.
O Cinema Marginal desenvolvido na Boca do Lixo paulistana funciona com um ponto de investigação absolutamente experimental, profano, debochado; o que talvez nos permita captar um quadro histórico, social e cultural bem heterogêneo de seus personagens dentro e fora da película. Mas não é só. Vejamos o décimo resumo. Aquilo que nos chama atenção na pesquisa de Nuno César é o diagnóstico da política cultural dos anos setenta; que se acomoda entre uma produção de caráter comercial – florescendo a comédia erótica, que eventualmente recebe financiamento do Estado – e uma produção “cultural” que delineou, portanto, a forma global da ação ideológica do Estado para o campo cinematográfico. Talvez pudéssemos avançar nessa temática fazendo uma análise comparativa entre esse trabalho (2002) e o recente livro A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX. Ricardo Waherendorff Caldas e Tânia Montoro (Coord.). Brasília; Casa das Musas, 2006. Atitude que nos permitira entender com mais detalhe o mecanismo das políticas públicas brasileiras para o cinema; ampliando, inclusive, o recorte histórico. Poderíamos ir até a década de 1990 com o fim da Embrafilme; analisando a jornais de época para obter mais informações sobre a produção, realização e distribuição dos filmes. Vejamos o resumo quatro. O movimento Cinema Novo como instrumento pedagógico deve ser absorvido, discutido e aprofundado cientificamente. Sua importância é necessária não apenas por tratar esteticamente o subdesenvolvimento do Brasil (que é histórico e político) de maneira tão aguda, mas porque permite a um público (não necessariamente infanto-juvenil), ainda em formação, refletir, também, sobre a condição de sua própria existência. Examinar produções como “Terra em Transe” no âmbito escolar, é mais do que descobrir historicamente e politicamente o Brasil; é se comprometer com seus problemas através do cinema. Diante disso, e seguindo um pressuposto não muito didático, porém reflexivo do ponto de vista historiográfico, faremos, a seguir, uma leitura em conjunto do Cinema Novo, da figura de Glauber Rocha e do emblemático “Deus e Diabo na Terra do Sol”. Leitura-síntese que nos permitirá introduzir de forma análoga um estudo crítico; articulando, ao mesmo tempo, algumas conexões literárias na ficção cinematográfica. Espécie de quadro barroco que tentará reforçar a interpretação do cinema como fonte de pesquisa e também como expressão política e artística para além do contexto histórico de 1964; ano em que o filme foi lançado. O nosso discurso será metonímico e tratará a arte como algo intertextual, transcendente, atemporal, porém histórico; uma compreensão histórica, política, social de ruptura através da estética e da literatura.



- O Cinema Novo como objeto historiográfico: A ampliação do olhar sobre Deus e o Diabo na terra do Sol

A antítese do sonho glauberiano pode ser revelada como marca salutar de uma arte que se desenha através de um paroxismo delirante, labiríntico; angústia que se dilata no exercício trágico de uma poesia épica, didática; espécie de ópera barroca que nos invade pelo caráter simbólico e dialético de seus personagens; energia revolucionária, quixotesca, organizada por um sentimento vulcânico de expor as feridas de um país epiléptico. Um país chamado Brasil.
Glauber Rocha, cineasta baiano morto em 1981 era assim mesmo, complexo; e continua sendo uma figura muito singular no que diz respeito à sua vida e obra; não só pelo número de filmes, ensaios, roteiros, cartas que nos deixou, mas pela profundidade científica de suas observações. Um calabouço de idéias misturadas por um sentimento às vezes incompreendido que, imediatamente “desafia” aqueles que discordam de sua lucidez profética e transformadora. Um idealismo atemporal, incansável que rompe, experimenta, exorciza todas as estruturas em nome de uma retórica cinematográfica nova, livre de esquemas ou convenções puramente comerciais ou partidárias. Arte que se constitui pela “brasilidade” estética, dramática, alegórica, inquieta, mágica, mística, anárquica; compromisso de “transformar” em utopia a consciência cega de um povo miserável, inerte diante de uma fatalidade social inconcebível.
Historicamente, foi através de idéias já fermentadas de transformação política e conscientização ideológica que Glauber, no final da década de 1950, começou junto com Miguel Borges, Cacá Diegues, David Neves, Mario Carneiro, Paulo César Saraceni, León Hirszman, Marcos Freire, Joaquim Pedro de Andrade, além de Nelson Pereira dos Santos (apenas alguns precursores), a desenvolver um tipo de cinema autoral e sem fronteiras. Um cinema que educasse o espectador em analisar a realidade do país através de uma dialética profunda, cirúrgica. Pedagogia revolucionária, batizada como Cinema Novo; percepção terminológica justificada pelo caráter híbrido, inédito e sempre inventivo de filmes que, apesar de “aliciados” pelo neo-realismo italiano, pela nouvelle-vague e pelo humanismo revolucionário do cineasta russo Sergei Eisenstein, – este talvez o maior inspirador ideológico do Glauber – conseguiram produzir uma concepção estética ousada, complexa, subjetiva, porém genuinamente brasileira.

- 1964: o pacto do com Deus e o Diabo
A síntese entre os opostos, caracterizada pelo barroco, irrompe como linguagem no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol; inquietude que se esforça para encontrar uma justificativa entre a razão e a fé, entre a graça e o livre arbítrio, entre a determinação da vontade e a paixão; algo que funciona como pedaço de um negativo; metonímia revolucionária que fotografa o destino trágico de personagens presos pela mesma fatalidade, dentro e fora do universo fílmico. Espécie de liberação do inconsciente coletivo do camponês brasileiro, do terceiro mundo. Estética que Glauber entendia como grito, rouco, mas original, de uma cinematografia crítica que se desloca através de um tempo circular, denso, trágico; onde o homem se constitui como um “títere” no palco do mundo, nas mãos de um deus negro e de um diabo loiro; do clero e do coronelismo. Sentimento de grandeza e esplendor travestido pela angústia interior que cada sertanejo leva consigo; lugar onde virtude e pecado se misturam ao êxtase católico de uma desarmonia sempre paradoxal: a morte é vida, a vida é sonho, o prazer é a escravidão, a penitência, a salvação.
A mise-en-scène em Deus e o Diabo funciona, de inicio, como literatura de cordel que pouco a pouco se transforma em ópera pelo contraste dialético profundo que observamos no decorrer do filme; teoria que o próprio Glauber mais tarde chamaria de trialética; ou seja, a solução dos problemas não aconteceria somente na justaposição dos contrários e sim através de sínteses, por outros caminhos na busca de uma melhor apreensão da realidade social; realidade que em Monte Santo foi considerada digna de ser adornada com serenidade e sinceridade, sem dissimulação diante das coisas mais comuns, mas com uma atitude de reverência acolhedora de tudo que pertence a terra e ao homem. Expressão artística que se coloca mais na elegância sóbria do que no artifício retórico. Sobriedade que em Glauber acontece como verdade; um tipo de elegância, que é a transformação mínima da realidade na poesia pedagógica a que se propõe o filme. Intranqüilidade onírica e crítica que se relaciona de maneira direta com o espectador-leitor durante praticamente todas as cenas; movimentos que acabam somente quando os olhos da mente se apropriam de parte do sonhado pelo realizador; ou seja, o filme só termina quando somos preenchidos pelo desafio da transformação dos dados essenciais do homem: o amor, o ódio, o mito, a violência, o esmagamento da estrutura agrária, a seca. Vertigem em preto e branco pelos confins da Bahia; composições ondulantes que se chocam sob a harmonia musical e apocalíptica de Sérgio Ricardo. Sentimento grandioso orientado pelo espaço e pelo tempo; lugar onde repousa o barroco e sua importância revolucionária sobre o ponto de vista ideológico. Visão que se enquadra através de uma realidade pobre e banal; ângulos que conferem uma grandiosidade épica, de planos vastos, das tomadas panorâmicas, com a câmera em movimentos dinâmicos. Correria louca de Manoel e Rosa do sertão para ao mar.
Toda essa ostentação visual e inclinação operística para a pompa e para os efeitos espetaculares em Deus e o Diabo, não estava longe os efeitos da igreja católica e do Concílio de Trento, ao usar formas sofisticadas do barroco (delírio decorativo, tendência para a monumentalidade, cultivo das grandes massas corais ou sonoras, horror ao vazio, profusão desordenada de formas ornamentais) para facilitar a missão da ideologia da Contra-Reforma. Extraordinária capacidade de assimilação e reflexão que se manifestou em Glauber através de sua quase inexaurível vitalidade artística.


- As conexões literárias
O filme consegue, positivamente, canalizar seus interesses ideológicos mostrando o paradoxo divino como algo superior ao raciocínio humano. Inquietude que se esforça por encontrar equilíbrio entre a razão e a fé, a graça e o livre arbítrio, a determinação da vontade e a paixão. Algo que reflete um estilo que se caracteriza pelo contraste entre a crença (masoquismo penitente) e a realização (utopia). Espécie de mística materialista que desce do céu para organizar a terra e desarmar os possuídos.
Talvez, pelo aspecto alienante e trágico que veste cada personagem em Deus e o Diabo, pudéssemos criar uma relação comparativa entre a arte de Glauber (pela influência de José Lins do Rego11) e o emblemático Dom Quixote do escritor Miguel de Cervantes12. Sentimento que aproxima um brasileiro de um espanhol justamente pela relação estilística; de gosto definitivamente barroco. Juntos, penetraram na complexidade da alma humana e a imortalizaram em seus retratos paradoxais por meio de interpretações mitológicas: Corisco e Dom Quixote, Sancho e Manoel; ainda que tenham conservado aqueles elementos que eram verdadeiramente poéticos para apresentar o mito de uma forma critica, “irônica” e sugestiva, também usaram a visão natural e a recordação histórica para evocar as distâncias no espaço e no tempo; para dar noção de sentimento e de grandeza, na ordem política e militar. Artistas que experimentaram em suas obras o efeito psicológico de luz e silêncio, Glauber e Cervantes nos permitem entender a arte barroca como arauto da Idade Moderna que reverberou de maneira grandiosa no Cinema Novo. Fenômeno que coloca Dom Quixote frente a frente com Deus e com o Diabo.
Nas duas obras, a moral do fracasso em busca da redenção está condicionada por uma interpretação semelhante, que podemos identificar tanto em Dom Quixote quanto no Beato Sebastião. Em ambos os casos, tais personagens são movidos pelo delírio profético, premonitório, de um oásis imaginário que surgiria muito em breve; cavaleiros da justiça que, como Corisco, partiram em busca de uma mudança; seja orientada pela força de São Jorge em Monte Santo, seja pela lança erguida em La Mancha; “filósofos” levados pelo misticismo e pela rebeldia anárquica de um mundo que os reprime; cada um dentro de seu universo; cada um com sua cruz; cada qual com seu discípulo: Sancho e Manoel respectivamente; cegueira e alienação que se renderam à fantasia do absurdo; espécie de linha fronteiriça desenhada entre a sensatez e a demência que nos coloca diante de um paradoxo existencial, mas dialético nas duas obras.
O curioso é que podemos entender a grande descoberta tanto de Cervantes quanto Glauber como um quadro barroco em que a moldura parece antes recortar um panorama que poderia sem dúvida estender-se em todas as direções. A primeira parte da história de Dom Quixote não termina com a sua morte; a moldura construída de maneira arbitrária com a apoteose da pluma do autor, não impede que a ação continue, uma vez que esta aparece em suspenso e aberta para a segunda parte. Do mesmo modo, Deus e o Diabo, é o desenvolvimento natural de Terra em Transe; que começa onde o outro termina: no mar; espécie de metáfora da liberdade; e culmina com a morte do poeta Paulo Martins; tipo que poderíamos ligar a Dom Quixote pela instabilidade de sua consciência e pela decepção física e moral que o acompanha até o final da história; fracasso que mais tarde o levaria a morte; final trágico que também liga esses dois personagens.
A aproximação das duas obras está exatamente no reconhecimento da literatura e da cinematografia como legítimo, porque ambas se vêem relacionadas com as formas de arte histórica. Cada uma destas formas pode ser chamada de barroca, porque cada uma é a expressão da mesma visão interior compartilhada pelo cineasta e pelo escritor, de maneira semelhante. Algo que não deixa de sofrer em nossa mente, transformações, interpretações, metamorfoses e disfarces, como a vida de todo herói barroco há de experimentar. Dom Quixote (refiro-me ao livro) e Deus e o Diabo na Terra do Sol conseguem trazer, indiscutivelmente, ao historiador, uma relação viva com as imagens citadas e projetadas tanto no livro quanto no filme. Algo sempre repleto de tensão e significado. Espécie de locução que não indica de imediato uma direção clara do pensamento; comparável às escadas barrocas que voam em direção de perspectivas inseguras e sonhadoras.
O valor universal de D. Quixote e Deus e Diabo na Terra do Sol se apóiam justamente no fato de que nenhuma interpretação histórica e estilística chega a esgotar a profundidade em cada uma das obras, e que cada historiador deve aproximar-se de cada uma delas com uma atitude diferente e original. A multiplicidade de sentidos procedentes e o cenário épico apropriado à captação da tragédia do homem e dos seus conflitos contribuem de maneira única tanto para literatura quanto para cinematografia mundial. Quixote passa o dia e a noite submerso na leitura de romances de cavalaria, perde a razão, se julga cavaleiro andante, sai ao encontro de muitas aventuras, cada uma mais absurda, e, por fim, no leito de morte, arrepende-se de haver desperdiçado sua vida e se extraviado por influência das leituras. Em Deus e o Diabo, Manoel, pobre vaqueiro, foge com sua mulher Rosa após assassinar o patrão explorador, envolvendo-se com beatos e cangaceiros. Nessas duas obras a retórica barroca, na sua avidez de reunir material expressivo para a vastidão de significados que agregam, se propõe aglomerar as figuras mais complexas no repertório estilístico. Escolhas que prevalecem o empenho de submeter à poesia à jurisdição de uma realidade velada pela instabilidade semântica e cênica, tanto em Monte Santo quanto em La Mancha.
O emprego de hierarquias estilísticas, extravagantemente dinamizadoras, permitiu uma linguagem apropriada à visão barroca desses dois artistas. Situação que compreende a priori ao fato estético: uma interrogação repleta de fascínio e pânico em face do limite que vai afrontar. Impossível, pois programar um conteúdo. Este se vai fazendo em cada um deles; e tem a duração da capacidade do sujeito para afrontar o ilimite (a morte). Daí a concepção barroca, em ambas as obras, de figuras estilísticas abertas, dinâmicas, essencialmente válidas e não decorativas.
Para Glauber essa liberdade de assumir uma consciência possível sustentada no plano prático de uma concepção estética dessa natureza – teoria da “Obra aberta” consagrada no livro (1962) de Umberto Eco, já fora, na verdade, uma conquista das vanguardas do séc XX, esboçadas desde as idéias dos dadaístas e de Marcel Duchamp13 – seria levar adiante, como conseqüência natural, um projeto cinematográfico centrado no problema da linguagem, esquematizando na conhecida fórmula, um dos tópicos da poesia pós-simbolista do ocidente: não importa o que se diz, se se sabe como se diz. Compreende-se, assim, o progressivo afastamento de Glauber de categorias como argumento, enredo, intriga, encadeamento lógico, trama, continuidade linear, ordenamento psicológico, etc., tudo isso supresso em favor da criação de formas livres.
Escolha que justifique, talvez, a sua escolha pelo barroco; que “se opõe” justamente a essas questões. Do mesmo modo, desde sua publicação em 1605, a influência de “Dom Quixote” na narrativa ocidental tem sido cada vez maior; poderíamos dizer que, sobretudo a partir do século 18, foi ganhando um pouco mais de atualidade a cada dia.
Logo, os maiores nomes da criação novelística posteriores a Cervantes confessaram a sua dívida com este texto inesgotável. Muitos personagens célebres da ficção moderna, além dos conferidos em Deus e o Diabo, têm traços comuns a D. Quixote: os protagonistas de “O processo” e “O castelo”, de Kafka14, e os de “Lord Jim”, de Conrad15. A multiplicidade de sentidos sem precedentes e o cintilar desses romances são, junto ao humor de Cervantes e sua descoberta da perfeita prosa narrativa, sua contribuição realmente única para a literatura mundial através do perspectivismo barroco.
Diante disso, a aproximação histórica de Cervantes e Glauber pode ser traduzida pelo drama barroco de suas obras; busca de uma linguagem que tivesse uma correlação com necessidades interiores e sociais, a partir de um vocabulário muitas vezes inadequado e incompreensível. Pinturas que saem dos quadros e permanecem em sensível deslocamento; quase sempre em situação espiritual de oposições e contrastes; formas, sugestões e emoções provenientes de diversas direções; dilatação que originará uma linguagem comum e de grande força centrípeta em todas as comunidades de nova formação histórico-cultural, espalhadas pelo mundo.
Ao realizar este estudo estilístico comparativo, me baseei em conceitos comuns tanto em Deus e Diabo na Terra do Sol quanto em D. Quixote; estes conceitos comuns e sua execução similar refletem sobre uma interpretação semelhante, que impelia os dois artistas “a perceberem as coisas da mesma forma” e, por conseguinte, a descobrimentos artísticos paralelos, que aqui chamamos de barroco. Elemento que mais fomenta e corrobora esta proposição de uma afinidade particular entre os dois criadores; vivacidade que desfrutamos em suas respectivas obras; particularidades que ganham um outro contorno analítico; testemunhando uma nova aproximação histórica mediada pela estética.








Conclusão

Longe de buscar conclusões apressadas, tentamos sugerir ao longo deste trabalho, possibilidades das mais variadas de apreensão analítica do cinema como fonte histórica; do pensamento socio-político ao linguístico (através da Semiologia e da Filologia); da razão, a revolução; do ético ao estético.
Sem tentar imobilizar um sentido único no resultado final de nosso pensamento, trabalhamos com a hipótese de uma avaliação circuscrita pela mensagem estética; ou seja, o produto artístico; aquele que provoca a sensação, o conhecimento, à liberdade de constituir os pensamentos, de vestí-los e de fazê-los falar historicamente. Câmera aberta que se baseia numa dialética entre aceitação e repúdio dos códigos léxicos do remetente (nesse caso do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol) – de um lado – e introdução e repulsa de códigos e léxicos pessoais (do historiador-autor), de outro. Dialética entre fidelidade e liberdade interpretativa que, se por um lado, permitem ao leitor captar os convites da ambiguidade da mensagem e preecher de forma incerta com códigos próprios, de outro, é reconduzido pelas relações contextuais (histórica, sociológica, antropológica, psicanalítica, filosófica, literária e não somente política) a ver a mensagem tal como foi construída, num ato de fidelidade ao historiador-cineasta e à época em que essa mensagem foi emitida.
O nosso estudo não termina aqui. É preciso que se entenda tal discussão como um processo que requer novas experiências científicas; desenhadas, evidendemente, por uma atividade de pesquisa que nos permita encontar solo fértil no imprevisível mundo das descobertas. O Cinema e a História devem ser apreendidos sempre pela congruência; que é luta da humanidade pela liberdade, a grande luta do homem contra a opressão rumo à liberdade, contra o subdesenvolvimento cultural, e sempre em favor de uma ruptura paradigmática de investigação. Na ciência, como na arte, encontramos o uso da experimentação e da intuição. O cientista se baseia no provável, enquanto o artista e o cienasta se baseiam no improvável, mas não é uma oposição de caráter metafísico. Portanto, o futuro da civilização brasileira dependerá também da instrumentalização dialética do seu cinema e da sua história. Ambos não como arte acadêmica, mas instrumento de expressão e informação ao alcance da produção e do consumo de cada um.



Notas



1Ferro, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992.

2 Idem p.84.

3 Ibidem p.86.

4 Ibidem p. 87.

5 Ibidem p. 76.


6 Ibidem p. 76.


7 Ibidem p. 76.


8 Ibidem p. 86.


9 Ibidem p.80.


10 Ibidem p.88.


13 Paz, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza; tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo. Editora Perspectiva, 1979.


14 Kafka, Franz. O Castelo; prefácio e tradução de Torrieri Guimarães.São Paulo. Edições TEMA, 2000.


15 Conrad, Joseph. Lord Jim; tradução de Mário Quintana. São Paulo. Abril Cultural, 1971.






Bibliografia


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