quinta-feira, junho 05, 2008

O espectro da ontologia brasileira


“(...) Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
(Hino Nacional - Carlos Drummond de Andrade)
Começa Serras da Desordem. Um ensaio etnográfico, antropológico desperta imediatamente os sentidos. Levi Strauss conduz com segurança o meu olhar pelo exotismo estrutural na figura do aborígene sob a experiência primitiva do fogo. Imediatamente, fui surpreendido; corte dos blocos de imagens articuladas; consecução e simultaneidade. Percebi o romantismo poético de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu; ritmo de um convívio tribal logo disperso pela chegada do homem branco. A diáspora se insurge neste exato momento de troca subjetiva: nasce o Índio; neologismo recuperado pelo “homem civilizado” que irá se legitimar freneticamente no percurso da opressão histórica discutida pelo filme; porque o espelho se quebra na experiência traumática do encontro. Aquilo que explode na tela, mais do que uma relação contraditória, irreconciliável, é a morte de uma narrativa histórica convencional, linear; também, a morte da alteridade radical da linguagem; porque já não existe mais duelo entre a linguagem e o sentido. Percebi, então, o impulso afetivo no permanente deslocamento espacial, simbólico e geográfico que, a meu juízo, não dialogam apenas com um tempo isolado mas com experiência afetiva que é articulada no movimento desse tempo; e, nesse sentido, a total perda referencial do presente ou passado, do mental ou físico. O princípio da espacialidade é diferente; tanto para o lado de Carapiru, quanto para nós. Logo, o filme de Andrea Tonacci tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginário; fragmentos da consciência onírica e empírica do diretor, que pintam, cirurgicamente, através de imagens e sons, cacos de uma iconografia histórica que não conseguiu, ainda, superar essa mesma realidade desintegrada; e aceita, com isso, uma abordagem romântico-modernista; justificada por reproduzir o mito do “bom selvagem” como expressão caótica do índio; característica muito presente, inclusive, na literatura de Sérgio Buarque de Holanda.
Existe uma revisitação à memória na instantaneidade e onipresença dos acontecimentos sugerida no tempo em que o filme está sendo exibido; pela capacidade de recusar o real e de propor a esse mesmo real outro cenário, onde a imagem dos seres, das cores sobre a tela, se liberam na mixagem transfigurada do movimento; espécie de antídoto contra o mito de uma consciência que não inspira nenhuma resposta, mas a vertigem circular entre dois mundos supostamente irreconciliáveis. A ficção Serras da Desordem simula o desaparecimento do índio através de um modo fractal de dispersão incessante, pelo deslocamento infinito da consciência e da própria ordem das coisas; já o documentário Serras da Desordem, nos diz que o peculiar e o fractal são o esquema atual de nossa cultura, e, por isso, o caráter estruturalista – como modelo de um sistema de diferenças – já não funciona eficazmente como aparelho científico de classificação de uma performance midiática, ondulante, da angústia gerada pelo filme. Diante disso, a promiscuidade entre ficção e documentário, índio e homem branco “flutuam” em inúmeras ramificações interpretativas; porque a desordem é o caminho, a voz iracundia que se perde na serra, que nos toca afetivamente pelo sentimento estético do anti-relevo, da anti-continuidade, do anti-significado. Realidades afetivas que ressoam livremente no jogo poético e antropofágico do movimento.
A idéia de progresso discutida em Serras da Desordem não está na ferrovia ou na fisionomia arquitetônica das grandes metrópoles; ela se traduz pela incoerência marginal deste progresso na tentativa medíocre de civilizar o índio; além de expô-lo como mercadoria exótica nos corredores do poder. É como se, no lugar de efeitos especiais, de acontecimentos imprevisíveis, Carapiru se acomodasse como protagonista no jogo irracional do teatro exemplar de nossa representação; onde os níveis de consciência coletiva fossem inteiramente efeitos midiáticos, regidos pela obstinação superficial da especulação. A alteridade torna-se, com isso, além de melodramática, auto-reprodutiva, auto-destrutiva. Vemos, então, que o desaparecimento do índio não importa desde que ele se reproduza na vitalidade da imagem; seja do cinema ou da televisão. Quando tal impulso é admitido, reconhecemos nessa tentativa frustrada um mecanismo de fuga inconsciente; onde estaremos condenados a simulação técnica do desejo e da consciência de si.
A boa fotografia do filme não representa nada; ela capta essa não representatividade, a alteridade do que é estranho a si mesmo, o exotismo radical do objeto-índio-homem-branco. Colorida ou em preto branco, a fotografia é o nosso exorcismo. Quando a sociedade primitiva tira as suas máscaras e a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens. Tonacci executa um tipo de fotografia que nos aproxima da mosca, de seu olho facetado e de seu vôo em linha quebrada. Somos a própria mosca varejeira a espreitar, através do filme, um cadáver em decomposição; ao mesmo tempo que tentamos reconstruir, como na anamorfose, a partir de seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada, suas linhas de fratura, a forma secreta de nossa tragédia histórica.
Serras da Desordem não termina porque foge às dimensões da moldura e, por isso, continua no fluxo da memória e do tempo em busca não de uma resposta, mas do devir permanente contra uma historiografia que tenta, sem sucesso, nos conduzir na poesia inacabada de nossa existência.
Bibliografia
1.BANDEIRA, Manuel. Seleta em Prosa e Verso. Organização, estudos e notas de Emanuel de Morais. Coleção Brasil Moço, vol. Nº 2; Rio de Janeiro. Editora José Olympio, 1971.
2.ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro. Record, 20ª Edição, 1986.
3.FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Circulo do Livro S.A, 1933.
4.LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967.

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