O filme se esconde na timidez e na falta de coragem em criar um argumento cuja profundidade filosófica inspire uma reflexão crítica mais realista; porque a trajetória do imigrante nordestino é forjada no jogo sedutor de uma obsessão reativa, cujo maniqueísmo vulgar nos toca, sempre, como falso. A dinâmica social sugerida por “Estômago” não atinge as relações de poder com intensidade, mas apenas como módulo ético, afetivo, entre aquele que manda e a obediência religiosa daquele que obedece; sublinhando, com isso, um certo tipo de inferioridade do homem provinciano; idéia já absorvida com facilidade pelo senso comum. Se Raimundo Nonato é representado como estatística, logo, pode ser pasteurizado semanticamente. Daí toda a facilidade e conveniência de um roteiro comercial. O sobre-trabalho, a exploração do homem pelo homem, não atingem o político mas um tipo de ajuste entre a aparência das coisas, o conflito não aprofundado e o jeitinho como estratégia de disfarce. Essa lógica, quando posta em movimento, subtrai as contradições e superficializa os elementos da estrutura. A suposta relação de poder sugerida no filme, longe de postular uma crítica social na estória narrada, anula a dimensão conflitiva; mergulhando no exotismo, no fetiche, no paralelismo e no melodrama.
O signo alimento tenta atingir a dimensão do erótico porque se articula como fetiche do sexual; não apenas através de uma suposta “falocracia”; mas do signo sexo enquanto potência discursiva, sempre em forma de “jogo” (muito longe do sentido de Jorge Luis Borges). Tal como o feminino que, encerrado negativamente numa estrutura enfraquecida onde se encontra aprisionado, não recobre uma “autonomia” de desejo ou de gozo, nem tampouco reivindica a sua verdade; apenas seduz. A prostituta Iria, nada mais significa do que aparência; logo, é o feminino como aparência que põe em xeque a profundidade do masculino. Diante disso, o que há, no filme, é sempre a tentativa de captar e imolar o desejo do outro; da impotência enquanto sedução. Desafetos, neuroses, angústia, frustração. Tudo o que a psicanálise encontra, sem dúvida, provém do fato de não se poder amar ou ser amado, de não se poder gozar ou se proporcionar gozo; mas o desencantamento radical da sedução e do seu fracasso. Neste sentido, o que sobrevive ao invés da máscara, do disfarce e da simulação, é um tipo de asfixia estrutural, esquemática, fixa; no charme da gastronomia de botequim, do restaurante sofisticado ou do almoço na cadeia; enfim, tudo aquilo que coopera para se justificar no desenho do flashback (relação da imagem atual com imagens-lembrança) narrado pelo personagem, cria um tipo de ficcionalidade que, também, se prostitui. O filme não consegue digerir aquilo que ele próprio expõe e soluça numa espécie de “morfologia”, cujo princípio de saciedade se exerce por meio de uma paixão fetichista. O roteiro de “Estômago” funciona; só não atinge o movimento das imagens; ao contrário, as paralisa. Neste sentido, a vida não é tocada; apenas o teorema do paladar.
O tempo Cronos do filme se bifurca em dois momentos paralelos, cúmplices; fixando os personagens e as coisas, desenvolve uma forma e determina o sujeito até a hora do crime. A narrativa se prende a este movimento porque é escrava de uma fidelidade auto-explicativa. Onde o teatro épico Brechtiano e, sobretudo, o literário são poucos explorados pelo que percebi. Como seria a originalidade de Borges em estender esse jogo a toda ordem social de “Estômago”? Onde vemos apenas uma estrutura de pouco peso, em vista da boa e sólida infra-estrutura das relações sociais respeitada pelo diretor, teríamos a reversão de todo o edifício; além do fazer da indeterminação a instância determinante. Já não é a razão econômica, a do trabalho e da história, já não é o determinismo “científico” das trocas que determina a estrutura social e a sorte dos indivíduos, mas um total indeterminismo, o do Jogo e do Acaso (metáfora da grande feijoada!). A predestinação semântica do filme coincidiria com uma mobilidade absoluta, um sistema arbitrário com a democracia mais radical; troca instantânea de todos os destinos, para satisfazer a “fome” de polivalência de nosso tempo que, ao invés de ser um tempo Cronos, estrutural e previsível, é um tempo Aion, indefinido do acontecimento; linha flutuante que só conhece velocidades; um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar.
A transgressão funciona como atitude à insuficiência discursiva do personagem Raimundo Nonato; na medida em que o ato criminoso nos surpreende por uma espécie de “formalismo bem comportado”, numa articulação essencialmente individualista e não como devir político-social. O “Antropofagismo” de Oswald de Andrade não foi digerido numa coerência estético literária inovadora; mas na repetição dos equívocos da historiografia convencional; devorar a carne para incorporar a força e, ao mesmo tempo, afirmação de um poder e destruição da diferença sobre o outro não adquirem um estatuto pedagógico-reflexivo. A “parte” da mulher comida e o vinho bebido, se compõem, numa espécie de atitude violenta e corrosiva, que poderia representar, talvez, um dos instrumentos de revide possível à cultura imposta pelo “colonizador”. Todavia, a sequência não consagra uma densidade psicológica que nos mova neste impulso. Muito diferente do romance “Palmeiras Selvagens”, de William Faulkner; se trabalharmos com a hipótese particular de um “Herói” entre a Dor e o Nada; onde encontraríamos a loucura e a ingenuidade eternamente modificadas em potências desafiadoras ao longo do percurso delirante das páginas/cenas. Longe desta possibilidade, o filme de Marcos Jorge não consegue atingir um tipo de fenomenologia da digestão; aliás, atinge no sentido Kantiano; através do objeto e de sua dedução lógica no contexto espaço temporal proposto. Muito diferente de Husserl onde os fenômenos físicos não têm intencionalidade e, nesse sentido, todo um processo de “Dispepsia” (má digestão nesse caso), se desenvolveria numa reflexão síntese dos aspectos perceptivos e funcionais do movimento do corpo.
Termino a minha análise sob a hipótese de que “Estômago” se contrapõe radicalmente ao texto “Eztetika da Fome”, escrito por Glauber Rocha; e, ao mesmo tempo, não absorve o fenômeno histórico; tornando-se, com isso, um filme comum.
Bibliografia
BARTUCCI, Giovanna. Borges: A Realidade da Construção: Literatura e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Prólogo de J.B.S. Haldane. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª edição, 1979.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo : Abril Cultural, 1980.
2 comentários:
dizer q o feminino está "encerrado 'negativamente' numa estrutura 'enfraquecida' onde se encontra 'aprisionado'" é uma atitude falocrata...
Concentrei-me na "elipse" do signo; disperso, sem fundamento psicológico ou metafísico. Na sedução mal elaborada que se perde no espaço das fórmulas previsíveis.
Grato.
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