Tentaremos, aqui, especular, resumidamente, sobre alguns tipos de “afinidade estilística” entre o filme Macbeth, de Orson Welles, e a estética expressionista; pensando numa articulação cuja densidade pictórica repousa no trágico; onde a forma das coisas ocupa, disciplinadamente, um tempo sombrio, delirante; e os medos que atormentam a alma humana; sempre na perspectiva do anômalo, do sofrimento e da morte. Rebelião interior do protagonista; espécie de apoteose do falso. Moldura de uma brutalidade insana, onde o místico pontua uma experiência sensivelmente gótica, demoníaca e cruel nas falas, gestos, luzes, na cenografia, na música...; introduzindo uma concepção arquetípica, alegórica de um poder despótico; sustentado ironicamente pelo ódio e pela vingança.
Shakespeare é “transcriado” na medida em que o texto, adaptado de sua obra, se compõe às imagens e sons; onde o teatro e a literatura dão lugar ao cinema sem desaparecerem por completo. Observamos, com isso, que não basta traduzir o sentido as palavras: é preciso recriar o texto, restituir sua estrutura original em “outra forma”. Esse movimento aliado à deformação e análogo aos sentimentos de Macbeth, se lança, na tela, sob a forma de pinceladas dramáticas, ordenadas por uma tensão existencial profunda, alucinada; que podemos aproximar da pintura “O Grito” (Skrik), do norueguês Edvard Munch; pela angústia levada ao paroxismo; tom que representa um mundo interior sempre desarmônico. Outro exemplo importante, seria o de refletirmos o político e a psicanálise como duas formas indissolúveis, talvez, no discurso de Welles. Embora o espelho seja anamórfico, a dimensão narcísica opera de modo sensível no inconsciente de Macbeth, na medida em tudo pertence a esfera da sensualidade, do prazer, dos impulsos; e tem, como destino, ser contrário da razão – algo subjugado ou reprimido de alguma maneira, na busca cega pela honra e pelo poder.
O lado místico do Filme explora uma fantasia humana obscura (a profecia das estranhas irmãs), além de contrastes em preto-e-branco de forma vigorosa e original; superando, inclusive, minhas dúvidas quanto ao diálogo com o pintor alemão Emil Nolde; pelo espírito solitário e individualista e pela crítica social da arte, além de toda uma poética traduzida em motivos retirados do cotiano, nos quais se observam o acento dramático e algumas obsessões temáticas, psicológicas; como, por exemplo, o sexo (no que toca ao “protesto” subtextual de Macbeth contra a ordem repressiva da sexualidade criadora: “Quem é aquele que não nasceu de uma mulher? É esse que devo temer e ninguém mais.”) e a morte (O assassinato de Banquo como desejo do crime supremo, porque o mesmo estabelece, nesse contexto, a ordem da sexualidade reprodutiva e, assim é, na sua pessoa, o gênero que preservará, segundo a estória, uma linhagem de reis; nesse sentido, os filhos de Banquo – “aqueles que herdarão o trono”, devem, também, ser mortos). Tal circularidade tormentosa, inconsciente, leva Macbeth ao conflito da ambivalência; eterna luta do Eros e o instinto destrutivo, ou de morte; viés filosófico e psicanalítico no sentido de uma coexistência entre pulsões antagônicas que se fundem; o sublime é o trágico, a verdade é a mentira, o amor é a morte, o nirvana é o purgatório, o concreto é o irreal. A pintura de Nolde, "A Última Ceia" (1909), com figuras deformadas, cores contrastantes e pinceladas vigorosas que rejeitam toda espécie de comedimento, traduzem um tipo de expressividade rude, interiorizada pelo protagonista no filme. Como vemos nesta passagem:
“São profundos os nossos temores em relação a Banquo. Em sua natureza real, reina aquilo que devemos temer. Muito ele ousa e junto com seu destemido espírito, ele tem uma sensatez que guia seu valor, fazendo-o agir em segurança. Não há nenhuma outra, exceto sua existência que eu temo e, diante dele, meu gênio é intimidado como dizem que acontecia com Marco Antônio diante de César. Mas que se despedace a estrutura das coisas e que pereçam o céu e a terra antes de comermos nossa refeição com medo e de dormirmos no tormento daqueles terríveis sonhos que nos agitam à noite. Melhor estar com os mortos que, para ganhar nossa paz, enviamos à paz eterna, do que nessa tortura de espírito, nesse repousar em insone êxtase (...)”*.
Macbeth tem visões que, ainda vagas e indistintas, mostram o absoluto que está por trás da realidade sensível. Tudo acontece nas sombras da noite, da névoa sinistra. Algo muito parecido, neste aspecto, com “O Gabinete do Dr. Caligari.; filme de Robert Wiene. A contradição profética do destino faz-nos absorver sensações de desconforto; composição visual desarmônica, flutuante do espírito e do estado das coisas.
Termino sob o argumento de que a arte expressionista, sobretudo o expressionismo alemão, sintetiza uma interpretação filosófica, artística, literária, psicanalítica da modernidade; como Kafka, Wilde, Joyce, Proust, Balzac e tantos outros que, espalhados pela Europa, refletiram a complexidade de um projeto industrial, tecnológico de um mundo enfermo pelo Capitalismo. E Orson Welles atualiza esse debate, sob alguns aspectos, no filme discutido. Logo, terei, seguramente, o desejo de aprofundar essas questões numa outra ocasião.
Notas
* Macbeth. Filme de Orson Welles, 1948.
Bibliografia
1. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
2. GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
3. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
Site pesquisado:
http://www.geocities.com/contracampo/expressionismoalemao.html