sábado, maio 31, 2008

O Expressionismo e a Máscara Trágica

Tentaremos, aqui, especular, resumidamente, sobre alguns tipos de “afinidade estilística” entre o filme Macbeth, de Orson Welles, e a estética expressionista; pensando numa articulação cuja densidade pictórica repousa no trágico; onde a forma das coisas ocupa, disciplinadamente, um tempo sombrio, delirante; e os medos que atormentam a alma humana; sempre na perspectiva do anômalo, do sofrimento e da morte. Rebelião interior do protagonista; espécie de apoteose do falso. Moldura de uma brutalidade insana, onde o místico pontua uma experiência sensivelmente gótica, demoníaca e cruel nas falas, gestos, luzes, na cenografia, na música...; introduzindo uma concepção arquetípica, alegórica de um poder despótico; sustentado ironicamente pelo ódio e pela vingança.
Shakespeare é “transcriado” na medida em que o texto, adaptado de sua obra, se compõe às imagens e sons; onde o teatro e a literatura dão lugar ao cinema sem desaparecerem por completo. Observamos, com isso, que não basta traduzir o sentido as palavras: é preciso recriar o texto, restituir sua estrutura original em “outra forma”. Esse movimento aliado à deformação e análogo aos sentimentos de Macbeth, se lança, na tela, sob a forma de pinceladas dramáticas, ordenadas por uma tensão existencial profunda, alucinada; que podemos aproximar da pintura “O Grito” (Skrik), do norueguês Edvard Munch; pela angústia levada ao paroxismo; tom que representa um mundo interior sempre desarmônico. Outro exemplo importante, seria o de refletirmos o político e a psicanálise como duas formas indissolúveis, talvez, no discurso de Welles. Embora o espelho seja anamórfico, a dimensão narcísica opera de modo sensível no inconsciente de Macbeth, na medida em tudo pertence a esfera da sensualidade, do prazer, dos impulsos; e tem, como destino, ser contrário da razão – algo subjugado ou reprimido de alguma maneira, na busca cega pela honra e pelo poder.
O lado místico do Filme explora uma fantasia humana obscura (a profecia das estranhas irmãs), além de contrastes em preto-e-branco de forma vigorosa e original; superando, inclusive, minhas dúvidas quanto ao diálogo com o pintor alemão Emil Nolde; pelo espírito solitário e individualista e pela crítica social da arte, além de toda uma poética traduzida em motivos retirados do cotiano, nos quais se observam o acento dramático e algumas obsessões temáticas, psicológicas; como, por exemplo, o sexo (no que toca ao “protesto” subtextual de Macbeth contra a ordem repressiva da sexualidade criadora: “Quem é aquele que não nasceu de uma mulher? É esse que devo temer e ninguém mais.”) e a morte (O assassinato de Banquo como desejo do crime supremo, porque o mesmo estabelece, nesse contexto, a ordem da sexualidade reprodutiva e, assim é, na sua pessoa, o gênero que preservará, segundo a estória, uma linhagem de reis; nesse sentido, os filhos de Banquo – “aqueles que herdarão o trono”, devem, também, ser mortos). Tal circularidade tormentosa, inconsciente, leva Macbeth ao conflito da ambivalência; eterna luta do Eros e o instinto destrutivo, ou de morte; viés filosófico e psicanalítico no sentido de uma coexistência entre pulsões antagônicas que se fundem; o sublime é o trágico, a verdade é a mentira, o amor é a morte, o nirvana é o purgatório, o concreto é o irreal. A pintura de Nolde, "A Última Ceia" (1909), com figuras deformadas, cores contrastantes e pinceladas vigorosas que rejeitam toda espécie de comedimento, traduzem um tipo de expressividade rude, interiorizada pelo protagonista no filme. Como vemos nesta passagem:
“São profundos os nossos temores em relação a Banquo. Em sua natureza real, reina aquilo que devemos temer. Muito ele ousa e junto com seu destemido espírito, ele tem uma sensatez que guia seu valor, fazendo-o agir em segurança. Não há nenhuma outra, exceto sua existência que eu temo e, diante dele, meu gênio é intimidado como dizem que acontecia com Marco Antônio diante de César. Mas que se despedace a estrutura das coisas e que pereçam o céu e a terra antes de comermos nossa refeição com medo e de dormirmos no tormento daqueles terríveis sonhos que nos agitam à noite. Melhor estar com os mortos que, para ganhar nossa paz, enviamos à paz eterna, do que nessa tortura de espírito, nesse repousar em insone êxtase (...)”*.

Macbeth tem visões que, ainda vagas e indistintas, mostram o absoluto que está por trás da realidade sensível. Tudo acontece nas sombras da noite, da névoa sinistra. Algo muito parecido, neste aspecto, com “O Gabinete do Dr. Caligari.; filme de Robert Wiene. A contradição profética do destino faz-nos absorver sensações de desconforto; composição visual desarmônica, flutuante do espírito e do estado das coisas.
Termino sob o argumento de que a arte expressionista, sobretudo o expressionismo alemão, sintetiza uma interpretação filosófica, artística, literária, psicanalítica da modernidade; como Kafka, Wilde, Joyce, Proust, Balzac e tantos outros que, espalhados pela Europa, refletiram a complexidade de um projeto industrial, tecnológico de um mundo enfermo pelo Capitalismo. E Orson Welles atualiza esse debate, sob alguns aspectos, no filme discutido. Logo, terei, seguramente, o desejo de aprofundar essas questões numa outra ocasião.
Notas

* Macbeth. Filme de Orson Welles, 1948.

Bibliografia

1. DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

2. GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

3. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
Site pesquisado:

http://www.geocities.com/contracampo/expressionismoalemao.html

domingo, maio 04, 2008

O Melodrama da Alteridade

Posições sociais, ritos de classe, repressão racial e sexual nos anos 1950. Longe do Paraíso inspira o rigor formal do clássico narrativo orquestrado pelo melodrama; lugar comum na história do Cinema Norte-Americano; de Griffith, Douglas Sirk, a Todd Haynes, o sentimentalismo açucarado reafirma essa tradição numa linguagem teatral, especular e literária. Entretanto, se a diegese do filme inspira essa dinâmica, o léxico conotativo rompe violentamente com tal postura; exatamente por sublinhar posições de confronto. Espécie de sobreposição pictórica onde a percepção Renascentista se mistura com os movimentos de vanguarda; numa só tela. O choque permanente entre o decoro público, familiar, rígido, hedonista, racionalista, com escalas cromáticas (sólidas) que definem a representação psíquica, estética das personagens, e a suposta “libertação” dessas exigências no percurso da experiência transgressora, inconsciente, manifestada pelo desejo (sentimento abstrato), faz-nos admitir tal possibilidade. O figurativismo Renascentista (Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt) acompanha a estrutura narrativa e “imita” a realidade concreta; porém, o sintoma é o irracional, o sensual, o sonho, o falso; chegando ao ilógico no percurso de uma incompatibilidade lúdica (Miró). Logo, esses movimentos articulados conseguem provocar uma reflexão sobre aquilo que está para além do visível, além da superfície, além das aparências. A simulação permanente de uma burguesia moralmente falida consagra aquilo que o filme tenta discutir: uma civilização ocidental repressiva, dogmática, preconceituosa, submersa, onde pessoas como Julianne Moore (Cathy Whitaker), Dennis Quaid (Frank Whitaker) e Dennis Haysbert (Raymond Deagan) se encontram.
O jardineiro Raymond pontua a sensação de hostilidade e estranheza que veste o olhar das pessoas no momento em que se aproxima; porque o racismo não existe enquanto o Negro permanece negro. Começa a existir quando o negro torna-se diferente, isto é, ameaçadoramente próximo. É aí que desperta a veleidade de mantê-lo à distância. O fato de estar presente a uma vernissage, reduto de uma “elite intelectual” branca, gera o desconforto e a necessidade de divisão no espaço simbólico. Mesmo sensível, bem articulado, a elegância e sofisticação de Raymond não sobrevivem a curiosidade pálida daqueles que, alheios ao universo da arte, simulam uma preocupação banal com a presença dele naquele espaço. O Sr. Deagan torna-se, então, um protótipo do negro que, embora discriminado socialmente, já absorveu os valores do cotidiano burguês. A etnia e o lugar social que ele ocupa na divisão do trabalho não pesam na constituição psíquica do personagem; apenas o resgate humanista da solidariedade e de um amor não correspondido por uma mulher branca.
Provinciana, submissa ao modelo tradicional, Cathy herdou a responsabilidade de cuidar dos eventos sociais, da família e do marido exemplarmente, sob os olhos atentos dos vizinhos fofoqueiros e das leitoras do Weekly Gazette, jornal da sociedade de Conneticut. Recolhida ao estilo idealizado pelos “bons costumes”, a falta de personalidade da “Sra. Whitaker”, nos mostra, inclusive, uma certa “discrição” no que se refere a atitude dela própria enquanto “mulher cidadã”; seu apoio a ANAPC (tipo de associação que luta pelos direitos dos negros) reforça um assistencialismo demagógico que não esconde a segregação racial naquela cidade. Embora a posição de Cathy diante do mundo seja de “quase” total recato, uma doçura infantil nos arrebata. Suponho que ela não lera “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir – publicado em 1949.

Figura central na trama, o executivo Frank Whitaker nos conduz pelo seu mundo tal como a experiência de Proust, Oscar Wilde e tantos outros. Energia dolorosa, marca vital a que chamamos de amor; sentimento íntimo, porém “incompatível” no filme. Amar outro homem ao invés da esposa gera desarmonia psíquica em Frank, motivada por um estágio repressivo do senso comum; que dá nome às coisas e a forma como se devem utilizá-las. O fato de ser casado, ter dois filhos, uma mulher solícita, além de uma imagem crível que deve ser mantida com todo o esforço, potencializa essa questão. No momento em que Cathy e Frank decidem juntos procurar um médico, estão obedecendo exatamente ao estímulo da incoerência padronizada do universo da diferença sexual. Logo, até o desejo precisa ser administrado, interpretado esquematicamente, mecanicamente, com o mesmo rigor gerencial do lar ou da empresa. Todavia, ao longo do filme, vemos que o predomínio já não é mais o da diferença ou indiferenciação mas o da incompreensibilidade eterna. A pouca luminosidade no “lar” do Sr. e da Sra. Magnatech traduz essa confusão dos gêneros; duelo entre a máscara e o vazio. Entretanto, se Frank, no início, provara o gosto de fel em se negar sob os efeitos da consciência moral e da obstinação terapêutica, no final, a sua decisão, ao contrário, assume e reconstrói a forma deste “Outro” eu. Daí nasce todo o jogo, todo o desafio, toda a paixão, toda a sedução no filme: do que nos é completamente estranho e que, todavia, tem poder sobre nós: o Outro.
Longe do Paraíso é um filme magnífico.
Bibliografia:
1.BALTAR, Mariana. Moral Deslizante: releituras da matriz melodramática em três movimentos. Sirk, Fassbinder e Haynes. Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho “Fotografia, cinema e video”, do XV Encontro da Compós, na Unesp, Bauru, SP, em junho de 2006 (mimeo).
2. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução: Sergio Milliet. São Paulo, DIFEL, 3ª edição, 1975.
3.DEMPSEY, Amy. Styles, schools and movements. Tradução: Carlos Eugêncio Marcondes Moura. São Paulo. Cosac & Naif, 2003.
4. WILDE, Oscar. A tragedia de minha vida. Tradução revista por Zuleide Faria de Melo. Rio de Janeiro : Biblioteca Universal Popular, 1964.
5.PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
6.SINGER, Bem. Melodrama and modernity. Early Sensational Cinema and Its contexts. New York, Columbia University Press, 2001.
7..XAVIER, Ismail. D.W. Griffith: O Nascimento de um Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984.