* Este artigo não contém as fontes de citação; a segunda etapa será postada em breve.
Rever alguns equívocos sobre o problema do intelectual na contemporaneidade, sua função histórica e pública, consagra, neste artigo, o meu interesse formal sobre este assunto – que teve uma certa "visibilidade", infelizmente, apenas, nos Centros Culturais, nas Universidades e nos canais de televisão por assinatura no ano de 2005; em razão, acredito, dos escândalos em que a cúpula do Governo estava envolvida e de um suposto "golpismo" que se insurgira contra o Presidente Lula naquela ocasião. Episódio que motivou uma série de conferências nas grandes cidades do país, onde a figura do intelectual era colocada em perspectiva; talvez, pela invisibilidade pública e pela falta de um "engajamento" ainda duvidoso deste personagem. Além de uma tentativa de recuperar no simbólico o papel histórico daqueles que seriam, ainda, os grandes "emancipadores" da consciência popular; tanto por uma suposta "virtude clerical" quanto pela organização e liderança em determinado grupo social ou político (posições que veremos ao longo deste apontamento). O fato é que, dois anos depois, a falta de interesse, injustificável, pelo assunto, negligencia, de forma criminosa, o debate aberto e democrático, assumindo uma condição unilateral e exclusivista, preconceituosa e, antes de tudo, classista. As interpretações gravitam aleatoriamente num campo puramente especulativo, antifilosófico, sem uma direção objetiva e concreta. Teórica, mas concentrada nas publicações inacessíveis ao grande público, além de um romantismo retórico que satisfaz, mesmo que parcialmente, as mais variadas intenções de forma equivocada. Porque motivo? Eu diria que, esclarecer o assunto de maneira ampla e irrestrita nos faria, segundo Spinoza, "deduzir corretamente as diferenças, concordâncias e oposições das coisas". E isso seria o mesmo que "balançar" uma espécie de "decoro" hegemônico, cuja finalidade inconsciente é a submissão de classe, além de uma série de pressupostos e interesses que lançam quaisquer discussões sobre o papel intelectual na obscuridade mórbida do conformismo e da incerteza. Diante disso, concentro-me nesta reflexão pela necessidade romper com uma ética acadêmica romantizada pelo idealismo burguês, para aderir, então, a uma nova experiência mais reveladora do ponto de vista cientifico; embora este texto seja anticientifico.
Mesmo verificando na antiguidade a presença de Tales de Mileto, Platão, Aristóteles e tantos outros que tiveram as suas devidas importâncias na vida pública e, também, na legislação em suas cidades, entendemos, todavia, o relevo das Idades Moderna e Contemporânea como recorte histórico mais apropriado para avaliarmos, com clareza, o papel dos intelectuais. A justificativa desta idéia está transição do Feudalismo para o Capitalismo; e tem como principais marcos a formação dos Estados nacionais modernos, as capitanias hereditárias, o renascimento cultural, a expansão marítima, a descoberta de novos territórios, as reformas e contra-reformas cristãs, o colonialismo, o surgimento das monarquias absolutistas, o Iluminismo e a independência dos Estados Unidos. O Mundo Moderno representou de forma explosiva as contradições entre o Capital e o Trabalho, assim como a contemporaneidade representa o vazio utópico e colérico desta bipolaridade. A partir da Revolução Francesa até os dias de hoje, dos exemplos que ficaram anacronicamente registrados, pode-se destacar a Declaração dos Direitos do Cidadão, com o estabelecimento de que a propriedade privada é "inviolável" e "sagrada", e o despertar da consciência da humanidade, de que os recursos naturais da Terra não são inesgotáveis. Ainda que seja menos pessimista do que Baudrillard, acredito que estejamos no lodo da repetição de fórmulas ultrapassadas. Um estado de crise sem precedentes na política, cultura, valores morais, estética, noções de espaço e tempo, relações entre o público e o privado, e de paixões eternamente revisadas; sem diminuir o peso da incoerência do Modo de Produção Capitalista numa reaplicação das contradições superadas. O Liberalismo Clássico, o Fordismo, a Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929, o Keynesianismo, a Crise Mundial do Petróleo, o Toyotismo, o Consenso de Washingnton, e, finalmente, a Barbárie (o atual estado das coisas). "O que fazer após a orgia?" Outubro de 1917 se mistura ao meu inconsciente de uma forma transitória porque a Revolução Russa foi e continua sendo refletida, para mim, não como a "Revolução Perdida", ou algo superado, mas o caminho preliminar, doloroso, em busca de uma liberdade incondicional em todas as esferas; em outros continentes. Imprevisto dentro da razão dominadora. O totalitarismo soviético não feriu o materialismo histórico; o seu vigor continuará, sempre, dentro de nós. Porque somos nós a História. Manifestamos esta perspectiva da ação concreta sobre necessidade fundamental em mudar a realidade: Dialeticamente! E o intelectual nasce do resultado contraditório e antiidealista de uma proposição racional e militante dentro do fenômeno histórico. Creio que as Idades Moderna e Contemporânea "oficializaram" tal postura critica e ativa do debate público sobre um mundo cada vez mais complexo. Logo, Antropocentrismo, Humanismo, a "separação" entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), além do Iluminismo, se aproximam, neste conjunto, a uma das metades na contextualização orbicular que observarei a seguir: a do Intelectual Tradicional. E, ao mesmo tempo, contrapondo-se a esta primeira idéia, verei uma outra categoria que rompe filosoficamente ao idealismo hegemônico e ao caráter "autônomo" desta linhagem: a do Intelectual Orgânico.
A proposição teórica que aponta para essas duas categorias, se encontra, também, nos livros "La Trahison des clercs" (A Traição dos Clérigos) de Julien Benda; e "Cadernos do Cárcere, volume 2" de Antonio Gramsci. Tal receituário nos permitirá avaliar as duas formas de interpretação que, mesmo antagônicas, se relacionam contraditoriamente.
Intelectuais Tradicionais
Uma das interpretações sobre a genealogia do termo "intelectual" exerce como ponto de partida 13 de janeiro de 1898, quando o escritor francês Émile Zola redigiu o emblemático manifesto "J’accuse", publicado no jornal republicano "L’aurore"; pedindo a revisão da sentença que acusara o Capitão Alfred Dreyfuss – oficial de origem judaica – de espionagem e traição. No dia seguinte, o mesmo jornal, publicara um abaixo assinado apoiando o artigo de Zola. Personagens como Anatole France e Marcel Proust contribuíram neste movimento de opinião pública. A questão central deste fato nos remete, aqui, a algo inédito: Émile Zola exercendo um outro papel histórico; saindo do lugar que lhe cabia na divisão social do trabalho e intervindo num assunto de interesse coletivo. O romancista (critério sociológico) transformou-se no intelectual (critério político) quando entrou no espaço público para defender Dreyfuss. Sérgio Paulo Rouanet nos diz que:
"A importância deste episódio define Zola como precursor, segundo alguns teóricos, do repertório universalista do iluminismo e da tradição republicana francesa; daqueles que nos anos 1930 protestaram contra o fascismo, no pós-guerra se opuseram à bomba atômica e ao colonialismo, nos anos 1960 e 70 condenaram a guerra do Vietnã e instalaram o tribunal Russel, e nos primeiros anos do nosso século se opuseram a agressão algo-americana no Iraque".
Tal afirmação de Rouanet, que ilustra o nosso raciocínio, representa uma defesa formal do repertório tradicional-universalista; compatível, segundo ele, "ao ideal da construção de uma civilização humana"; opondo-se a um tipo de relativismo canceroso e unilateral; além de arcaico. Fanatismos religiosos, nacionalismos extremados, etc... . O intelectual tradicional, segundo o diplomata, ao contrário, exerceria a uma atividade central e independente; fora das relações de poder. Defensor desta mesma opinião, a falta compromisso com a verdade, segundo Julien Benda, "estimulada pelas paixões políticas e ideológicas", trairia o vínculo racionalista proposto neste sentimento de universalidade. O filósofo cita, inclusive, Maurice Barres e Charles Maurras; artífices da Action française, do anti-semitismo e da direita monarquista francesa; cobrando uma superioridade moral até então esquecida por eles. Todavia, de que maneira este tipo de racionalismo pautado no repertório universalista do iluminismo e na tradição republicana francesa não seria, também, uma forma de particularismo? O intelectual significaria uma entidade acima do bem e do mal? A luta de classes se tornaria uma questão puramente metafísica? Com que neutralidade as contradições do fenômeno histórico contemporâneo seriam observadas? Tudo seria levado a potência abstrata em nome de uma vocação moral não laica? Penso que não deva haver consenso ideológico sobre Razão, Justiça, Liberdade e Felicidade – a universalidade sugerida pelo Catolicismo Anglo-saxão, pelo "Neo-pentecostalismo", pelo Islamismo e, também, pela Filosofia Metafísica que, embora muito sedutora, acaba se esgotando nela mesma. Porque a Filosofia Metafísica não pode, ao meu ver, inspirar uma ordem absoluta dos fenômenos utilizando "uma razão abstrata" sem reconhecer que esta mesma razão seja dialética; ignorando, assim, a materialidade do objeto. Hegel bem que tentou, mas se esqueceu das relações de produção e dos processos produtivos referidos por Marx. A Metafísica é, portanto, a antítese da Dialética. Logo, os intelectuais universalistas são filhos de um humanismo metafísico individualista cujo reconhecimento se opõe ao relativismo dos fenômenos históricos, culturais, políticos, etc... . Ou seja, universalizar para particularizar. O verbo é ideológico e, por isso, segundo Baktin:
"o pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento".
Diante disso, a matriz universalista é o câncer hiper-realista de um purismo filosófico que despreza as relações sociais em que a própria Filosofia está inserida. Pensar um país sem gravata, eis o nosso objetivo; porque a chantagem universalista é justamente uma cúria sacerdotal que debocha daqueles que pretendem mudar a sua comunidade ou região através de um pensamento orgânico, que atenda as expectativas de determinado grupo social. Percebo que exista um etnocentrismo muito forte nessa estória; pautado, inclusive, no racionalismo cartesiano e na filosofia alemã. Rouanet é um homem inteligentíssimo, mas não me atrai com a sua "democracia cosmopolita". Tal paradigma se apresenta equivocado aos meus olhos. Somos bárbaros, não somos civilizados. O mundo moderno ainda não amadureceu psicologicamente na mesma velocidade do tecnológico. "Ave Marcuse".Continuamos gravitando em torno da ficção capitalista, neoliberal. Logo, pensar numa superioridade ou virtude intelectual tendo como princípio a linhagem universalista é conversa fiada. Não existe purismo ou superioridade mística totalizante. O amor é absoluto? A verdade é absoluta? A liberdade é absoluta? Decisivamente não! Se o fossem, já estaríamos num estágio desconhecido; para além do Comunismo, de transcendência. Portanto, e para concluir, a tese universalista está, ao meu ver, superada pela história.